Uma década bem longe do consenso político
Petistas vangloriam-se de ter tirado da pobreza quase 30 milhões de brasileiros. Oposicionistas atribuem ao partido a "institucionalização da corrupção". Ruralistas e ambientalistas reclamam das políticas ambientais.
No dia 1.º de janeiro de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva subia a rampa do Palácio do Planalto como presidente da República após três derrotas eleitorais. Ele se reelegeu em 2006 e ainda conseguiu fazer a sucessora, Dilma Rousseff, em 2010. De lá para cá, ficaram para trás 10 anos de gestão petista. Para analisar essa década de PT no poder, a Gazeta do Povo ouviu especialistas em seis áreas distintas e políticos da situação e da oposição. Nesta matéria, o balanço da administração do PT: o protagonismo internacional conquistado pelo país e a ascensão social de milhões de brasileiros que contrastam com os desvios éticos do partido e a falta de infraestrutura para alavancar o desenvolvimento do país.
Política
Do radicalismo ideológico que provocava calafrios no mercado financeiro às alianças políticas antes inimagináveis. O caminho político do PT desde que Lula assumiu o Planalto explica-se por um aspecto principal: o partido deixou de ser oposição para virar governo. Para o cientista político Antônio Octávio Cintra, da Universidade de Brasília, o ímpeto oposicionista, sobretudo no aspecto moral, deu lugar à realidade de entender que não há como governar sozinho. "O problema é que o PT, em algumas perspectivas, tornou-se realista até demais", avalia. Cintra afirma que os petistas exageraram na dose do realismo ao decidir fazer qualquer coisa em nome do projeto de permanecer no poder por pelo menos 20 anos inclusive aceitar como aliados inimigos mortais até então, como o senador José Sarney (PMDB-AP) e o deputado Paulo Maluf (PP-SP). "A partir desse oportunismo político, o lado ideológico foi colocado em segundo, terceiro plano veja o caso do mensalão." Um dos reflexos disso é que petistas históricos decidiram abandonar o partido, como Marina Silva, Heloisa Helena e Luiza Erundina.
Diplomacia
A busca por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU norteou e alterou a atuação diplomática brasileira ao longo da gestão petista. Alberto Pfeifer, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP, explica que Lula deu à diplomacia um caráter mais político. O país aproximou-se de parceiros não tradicionais, como os países da América Latina, da África e das nações árabes, além de estabelecer um eixo sólido com os Brics (Rússia, Índia, China e África do Sul). Também abriu ou reforçou a interlocução com algumas ditaduras, como Síria, Irã e Cuba. Isso inevitavelmente suscitou críticas. Mas, do ponto de vista da diplomacia, pode ser interessante, diz Pfeifer. Em contrapartida, o Brasil afastou-se dos parceiros tradicionais, EUA e Europa, passando a manter com eles uma agenda regular e ordinária. O crescimento econômico do período também credenciou o país a se tornar um importante interlocutor no cenário mundial. Porém, segundo Pfeifer, isso ocorreria com qualquer governo.
Saúde
Segundo Rita Esmanhoto, professora de Saúde Comunitária da UFPR, um dos melhores indicadores para medir a qualidade das políticas de saúde é o índice de mortalidade infantil. E, ao longo da gestão do PT, esses números são bons. Em 2000, o índice era de 36 mortes a cada mil nascidos vivos maior que o do Paraguai. Hoje, a taxa é de 17 por mil. Ela explica que a taxa aponta uma melhoria na saúde de forma geral. "Isso permite avaliar itens de infraestrutura saneamento básico, moradia, salário dos pais até a qualidade e a estrutura do atendimento hospitalar." Na contramão, porém, Rita critica o financiamento do SUS. Ela diz que a saúde vive dois mundos: o dos 12% dos brasileiros que têm planos privados e o restante (88%) que precisa da rede pública. Rita argumenta que a falta de dinheiro no sistema público poderia ser solucionada por medidas simples, mas controversas: a diminuição do desconto do IR para quem tem plano de saúde ou a garantia de que os planos de saúde reembolsem integralmente ao Estado atendimentos particulares feitos pelos SUS. Outro desafio, na visão de Rita, é melhorar a qualidade da atenção primária dos pacientes, incluindo a prevenção.
Educação
Dez anos de gestão do PT promoveram avanços no sistema educacional brasileiro, mas o caminho a percorrer ainda é longo e repleto de obstáculos. Professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e ex-assessor da Unesco, Célio da Cunha afirma que a mudança positiva vem desde a educação infantil, que passou a ser reconhecida como etapa importante do ensino. Segundo ele, reconhecimento semelhante se deu no ensino fundamental, para garantir a alfabetização aos sete, oito anos. A instituição do 9º ano, com o ingresso das crianças um ano antes no ensino obrigatório (aos 6 anos), diz ele, também foi importante. "Mas o ponto crítico é o ensino médio; o porcentual de evasão ainda é altíssimo. É preciso diversificar o currículo e torná-lo mais atraente para reter os alunos." Sobre o ensino superior, Cunha afirma que o governo acertou ao regionalizar as universidades, principalmente em áreas mais pobres e distantes. A instalação de escolas técnicas também é um destaque. Ele ressalta, porém, que as instituições federais ainda são corporativistas e têm pouca atuação na sociedade. Cunha ainda vê como positivo, embora insuficientes, a instituição do piso salarial nacional para professores e a criação de mecanismos mais ágeis no financiamento do ensino, fazendo com que o investimento na área, que não chegava a 4% do PIB no início da década de 90, saltasse para 5,1%.
Infraestrutura
Professor do Mestrado e Doutorado em Gestão Urbana da PUCPR, Carlos Hardt lamenta que o governo petista não tenha sido capaz de dotar o país da infraestrutura necessária para atender à crescente demanda vivida pelo país, apesar de ter melhorado a economia. "O contingente de consumidores aumentou muito o que é bom do ponto de vista social , mas a infraestrutura existente não deu conta da demanda." Hardt afirma que os problemas nessa área vão desde os mais básicos, como no saneamento, até os mais complexos, caso das telecomunicações. Para ele, há falhas na capacidade gerencial e financeira dos projetos e obras. Isso, afirma o pesquisador, levou o governo, acertadamente, a privatizar determinados setores medida combatida historicamente pelo partido , como os aeroportos. "Cabe agora ao governo ditar regras claras e fiscalizar de perto as concessões." Mas ele lamenta que as agências reguladoras, responsáveis por esse papel, acabaram aparelhadas politicamente.
Economia
O cientista político Antônio Octávio Cintra, da Universidade de Brasília (UnB), avalia que a decisão política mais importante do governo petista foi conservar o eixo econômico das gestões anteriores. "A inflação prejudicava muito os mais pobres", diz ele. A redistribuição de renda é outro destaque. Roberto Piscitelli, professor de Finanças Públicas da UnB, ressalta o papel do salário mínimo: em dez anos, a variação real foi de 122%. Mas ele vê com ressalvas os outros dois tripés dessa política: os programas assistenciais e a Previdência. Para Piscitelli, o Bolsa Família, carro-chefe desses programas, transformou-se em assistencialista, sem porta de saída para o beneficiário. Já em relação à Previdencia, ele demonstra preocupação com o fato de a maior parte dos benefícios não estar sendo reajustada na mesma proporção do salário mínimo. Na macroeconomia, Piscitelli elogia a queda da taxa de juros, de 25% ao ano em 2002 para 7,25% agora. O professor ainda afirma que Lula foi corajoso no enfrentamento da crise internacional de 2008: indo na contramão do que defendia parte dos especialistas. "Ele incentivou o consumo e ofereceu crédito, além de aumentar os gastos do governo. Isso manteve um bom nível de emprego e renda."
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