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Celas usadas para abrigar presos políticos durante a ditadura na cadeia do Ahú, em Curitiba | Henry Milleo/Gazeta do Povo
Celas usadas para abrigar presos políticos durante a ditadura na cadeia do Ahú, em Curitiba| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo

Avaliação

Apesar de limitações, trabalho de comissão trouxe avanços

Não foi só a falta de cooperação dos militares que impediu o trabalho da Comissão da Verdade de ir mais longe. Divergências internas entre os conselheiros, falta de tempo para execução de tudo o que era necessário e a distância do período investigado também atrapalharam o andamento da apuração.

Mesmo com todas as limitações do trabalho, pesquisadores são unânimes em reconhecer que as investigações realizadas pela Comissão Nacional da Verdade se inserem como um marco na luta pelos direitos humanos e pela recuperação da memória histórica. Não só pelo passado, mas também pelo presente.

Na avaliação do professor da Faculdade de Direito da USP Guilherme de Almeida – presidente da Associação Nacional dos Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação –, a violência policial cotidiana, que ainda provoca mortes e desaparecidos, é uma prova dessa herança de torturas impunes.

"Para virar a página tem de ler a página. O grau de violência letal do Estado brasileiro é algo grave que tem de ser enxergado e debatido. A violência do Estado não foi debelada", diz.

Nova chance

No ano em que o golpe militar completa 50 anos, a existência de manifestações pedindo a volta da ditadura também serve como alerta de que as lições do passado não foram bem compreendidas.

"Isso só pode acontecer por falta de memória. Nós também temos responsabilidade sobre isso, porque não soubemos contar a história aos mais jovens", diz o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke.

Com o relatório da Comissão da Verdade, há uma nova chance de resgatar a história do período ditatorial.

Os brasileiros que saíram às ruas para pedir a volta do regime militar têm uma oportunidade inédita de conhecer as minúcias do que querem reviver. Depois de ouvir 1.117 depoimentos, analisar arquivos e visitar centros de torturas, mortes e desaparecimentos no período da ditadura (1964-1985), a Comissão Nacional da Verdade vai divulgar em 10 de dezembro seu relatório final, em três tomos que revelam contornos inéditos sobre um dos capítulos mais sombrios da nossa história.

O texto vai detalhar os perfis e as violações cometidas contra 421 mortos e desaparecidos – um número maior do que o conhecido até então, quando se contabilizavam 362 vítimas. E, numa das medidas mais polêmicas, vai propor a responsabilização jurídica dos torturadores.

O grande enigma é como essa recomendação será levada adiante – se é que será –, já que pode implicar a revisão da Lei da Anistia. De acordo com o presidente da Comissão Nacional da Verdade, o jurista Pedro Dallari, caberá ao Judiciário, ao Executivo e ao Legislativo tomarem as providências necessárias para garantir a responsabilização. Como os mandatos dos conselheiros da comissão se extinguem em 16 de dezembro, será proposta a criação de um órgão que dê continuidade às ações, acompanhando a execução das recomendações.

"Não vamos entrar no detalhe, se tem de revogar a Lei da Anistia ou não, porque há uma discussão jurídica sobre isso. Há juristas que acham que nem precisa mexer na lei. Para nós, o relevante é que haja responsabilidade jurídica aos que deram causa a essas graves violações de direitos humanos, para que não haja impunidade", diz Dallari.

Além de apresentar uma relação de responsáveis e o detalhamento de sua participação em cada caso, o documento final descreverá a estrutura das cadeias de comando e do modus operandi do sistema repressivo. Na avaliação de Dallari, a maior contribuição será desmistificar a ideia de que os excessos foram casos isolados ou eventuais. Extrapolando o conceito de "porões da ditadura", comprovou-se que os métodos adversos estavam incrustados em toda a burocracia do Estado.

"Ficou evidente que houve graves violações aos direitos humanos que não decorreram da ação isolada de alguns indivíduos, foram produzidas por orientação da cúpula do regime militar de maneira sistemática, persistente. O relatório é um compêndio de crueldade. Em alguns momentos é até difícil de ler, tal a crueza e a rusticidade da conduta de servidores públicos, pagos pelo erário. É fundamental que as Forças Armadas reconheçam seu protagonismo, até em benefício da reconciliação nacional", defende.

A julgar pela disposição das Forças Armadas, esse reconhecimento não deve acontecer tão cedo. Os comandos militares nem sequer abriram seus arquivos, alegando que os documentos haviam sido destruídos – hipótese desacreditada por quem conhece a rígida organização dos batalhões. Diante de um pedido feito em fevereiro deste ano pela Comissão Nacional da Verdade, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica até abriram sindicâncias para apurar violações aos direitos humanos em sete unidades militares descritas por vítimas como centros de torturas, mas em junho apresentaram conclusões nulas: negaram ter descoberto qualquer "desvio de finalidade" em suas instalações no período militar.

"Enquanto as Forças Armadas não reconhecerem o que aconteceu, mesmo diante de evidências muito robustas, pairará sempre aquela dúvida sobre o efetivo compromisso democrático delas", afirma Dallari.

A resistência dos militares em colaborar com as investigações é apontada como um dos maiores entraves para a localização de corpos de desaparecidos políticos – cerca de 200 deles permanecem com destino ignorado. Foi por não ter investigado e punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos ocorridos na Guerrilha do Araguaia, aliás, que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2010. Na avaliação da Corte, as disposições da Lei da Anistia não poderiam impedir a investigação e a sanção de graves violações de direitos humanos.

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