Num efeito dominó, o rombo dos orçamentos públicos chegou ao elo mais fraco: as prefeituras. Com caixa mais apertado e pouca capacidade de arrecadação, os prefeitos têm lançado mão de várias medidas para fechar as contas: a lista do ajuste municipal inclui desde a demissão de funcionários até a redução do horário de expediente dos órgãos públicos. O malabarismo, porém, não deve ser suficiente: mais de 60% das prefeituras vão terminar o ano no vermelho, segundo pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM).
A deterioração das contas dos municípios, assim como vem ocorrendo com os governos estaduais, tem como pano de fundo a grave crise fiscal que assola o Brasil. No caso dos estados, o problema foi agravado pela combinação entre aumento da dívida e crescimento das despesas com pessoal.
Nas prefeituras, o nó está na alta dependência das verbas da União. Com arrecadação mais fraca desde o ano passado, os prefeitos têm sido afetados pela queda nos repasses públicos. Hoje apenas 10% dos 5.570 municípios do país têm arrecadação própria suficiente para bancar suas despesas.
Na maioria dos casos, a principal fonte de recursos é o Fundo de Participação dos Municípios (FPM), composto pela arrecadação do Imposto de Renda (IR) e Imposto sobre Produto Industrializado (IPI). E qualquer corte nesse fundo faz um estrago enorme nos cofres dos municípios.
Com a recessão econômica, que derrubou a arrecadação dos governos federal e estaduais depois de quase uma década de alta ininterrupta, os repasses começaram a minguar. No ano passado, o FPM teve queda real (descontada a inflação) de 2,3% e, neste ano, de 13,7% até abril. Enquanto isso, as despesas com pessoal – principal gasto das prefeituras – e custeio continuaram a crescer. Só o piso salarial dos professores subiu 11,36%.
O resultado dessa equação não tem sido positivo: falta dinheiro para pagar salário, fazer obras de infraestrutura, comprar remédios, abastecer os veículos e garantir a merenda escolar. “Ao contrário dos estados, que têm elevado endividamento, o problema dos municípios está mais associado à queda de arrecadação e ao aumento de gastos. Eles não têm para onde correr para se financiar”, afirma o consultor em contas públicas, Raul Velloso.
A situação é tão grave que entrou no conjunto de prioridades do presidente em exercício Michel Temer. Em seu primeiro discurso, ele falou da necessidade de uma reformulação do pacto federativo, que hoje provoca desequilíbrio entre as três esferas públicas na repartição dos tributos. “Estados e municípios precisam ganhar autonomia verdadeira sobre a égide de uma federação real, não sendo uma federação artificial, como vemos atualmente”, afirmou.
Uberaba decreta crise financeira
Localizada no Triângulo Mineiro, uma das regiões mais ricas do Brasil, Uberaba (MG) também é vítima das dificuldades enfrentadas pelos municípios. Há pouco mais de um mês, o prefeito Paulo Piau (PMDB) baixou um “Decreto de Crise Financeira”. No documento, ele aponta problemas como a queda na arrecadação e nas transferências de receitas.
Segundo o prefeito, caso a situação se agrave ainda mais, serão feitas adequações no texto. “Se necessário, chegaremos ao Decreto de Calamidade Financeira.” O documento destaca ainda a falta de perspectiva de melhoria na arrecadação em curto prazo e a dificuldade do município de quitar a folha de pagamento, sendo necessário o parcelamento. Enumera também gastos que deveriam ter ajuda do Estado ou da União - caso dos pacientes de 80 municípios que são atendidos em Uberaba.
“Estamos lutando para manter os serviços essenciais, pois educação, saúde e coleta de lixo não podem parar”, diz Paulo Piau. Com o decreto, dinheiro para setores não essenciais passaram a ser liberados apenas com o aval do “gabinete de gerenciamento da crise”.
Ainda assim, o serviço de saúde tem apresentado problemas graves. São apenas quatro ambulâncias e somente uma delas tem suporte avançado. O secretário de Saúde de Uberaba, Marco Túlio Cury, concorda que é pouco, mas alega ter o apoio da unidade de socorro dos bombeiros. Mas ela nem sempre está disponível.
No início do mês, a morte de um homem dentro de uma ambulância virou notícia na cidade. Marcelo Barbosa, de 51 anos, passou mal e a família chamou o socorro. Segundo sua esposa, Railide Aparecida Barbosa, além de demorar, a ambulância tinha apenas o motorista. Ela conta que o marido entrou andando na ambulância, mas depois começou a se contorcer. “Tentei fazer massagem, mas não sabia.” O motorista sugeriu parar o carro e pedir socorro na rua. “Meu marido caiu morto dentro da ambulância”, lamenta a mulher.
Cury alega que o homem teria morrido assim que chegou à unidade de atendimento. E que ambulâncias apenas com motoristas são deslocadas para casos não urgentes.
Em Iperó, pacientes sem médico e crianças sem escola
Com o corte da cesariana inflamado e o filho de 22 dias no colo, a doméstica Lourdes Cristina dos Santos, de 26 anos, estava havia uma hora esperando atendimento em pé, à frente da unidade de saúde do bairro George Oetterer, em Iperó, interior de São Paulo. O menino estava com peito chiando. A sala de espera, lotada de pacientes, não tinha lugar para sentar e, como muitos outros, ela esperava a vez do lado de fora. “É um médico só para atender toda essa gente.”
Lourdes já havia procurado a mesma unidade de pronto-atendimento no dia anterior, mas foi para casa porque não tinha médico. A menos de um quilômetro, uma Unidade Básica de Saúde, que deveria estar pronta desde outubro de 2015, teve as obras paralisadas por atraso nas verbas e só foi retomada em março deste ano. O novo posto, que desafogaria o atendimento no bairro, só deve ficar pronto em julho.
Com a queda de arrecadação, o município foi obrigado a cortar horas extras, extinguir cargos em comissão, rever contratos, reduzir investimentos e limitar serviços, como o transporte terceirizado de pacientes. O projeto do bulevar que embelezaria a região central foi adiado. Como os repasse do Estado também minguaram, a construção da Escola Estadual de George Oetterer atrasou e faltam vagas. As medidas de contenção ainda estão em vigor: neste ano não teve carnaval e a festa de aniversário da cidade foi reduzida.
A população sentiu o impacto. A dona de casa Priscila Gomes, de 25 anos, moradora do bairro Vileta, descobriu que a filha Adriele, de 4 anos, tem hérnia e precisa fazer cirurgia, mas há duas semanas vai ao posto e não consegue a consulta. “Falta médico e a fila é muito grande”, diz. “Eles sempre mandam voltar na semana seguinte.” Ela conta que o transporte escolar da menina também foi cortado. “Levo a Adriele a pé para a escola, que fica longe. Quando chove, é um drama.”
Bairros vizinhos de George Oetterer, como o Vileta e o Jardim das Monções, formaram-se com a ocupação de áreas devolutas ou particulares e o processo de regularização, esperado há mais de dez anos, está parado. A maioria das casas não tem coleta de esgoto e muitas ruas são de terra. Nas asfaltadas, sobram buracos. “Tem poste, mas não tem luz. À noite, a gente tem de iluminar com o celular para não cair nos buracos”, conta a aposentada Maria Hilda da Conceição, de 59 anos, moradora da rua Paraná.
O município informou que tem convênio com o Estado para asfaltamento do bairro, mas houve atraso nos repasses. A crise também adiou a abertura de uma grande empresa já instalada e elevou o desemprego. Recentemente, a associação de moradores da cidade fez mutirão para colocar lajotas no bairro Bela Vista. Em George Oetterer, a prefeitura cedeu as tintas e os moradores pintaram a escola.
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