Com um ar entre impaciente e irônico, José Dirceu tamborila os dedos no tampo da mesa. Tira os óculos, esfrega os olhos. Conserva ainda os cabelos mais pretos do que brancos. Tenta tirar da sala a equipe de filmagem do diretor João Moreira Salles, que gravava a reunião da cúpula de campanha à Presidência de Lula quatro dias antes do primeiro turno eleitoral de 2002. Lula venceria a eleição em um segundo turno e as imagens de Moreira Salles virariam o documentário Entreatos. Quase 14 anos depois, o PT acaba de deixar o poder em um processo de impeachment, depois de ser fustigado por escândalos de corrupção como mensalão e Lava Jato, que desmoralizaram as principais lideranças do partido.
No contexto atual, as palavras ditas por Dirceu no vídeo de 2002 ganham um ar de confissão premonitória. Na cena, o então futuro chefe de gabinete de Lula Gilberto Carvalho argumenta em favor das filmagens, garantindo que as fitas seriam colocadas em um cofre ao fim de todos os dias de gravação e, por isso, o que fosse dito não vazaria. Sorriso de canto de boca, Dirceu dispara: “Vai nessa. Se você soubesse onde eu estou. Se você soubesse o que eu tenho nas outras campanhas, você não falaria isso. Gilberto Carvalho, para com isso. Tem gente dentro da nossa cabeça”.
Hoje, Dirceu, que chegou a ser um poderoso ministro-chefe da Casa Civil até 2005, passa os dias ocupado entre as leituras de seu processo criminal e de biografias de políticos, além das caminhadas no pátio do Complexo Médico Penal de Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba, onde está preso há um ano. A trajetória do ex-ministro do poder e prestígio de Entreatos ao ocaso político da prisão não é um fato isolado na narrativa dos diversos personagens, entre famosos e anônimos, que figuram no filme. Os ex-ministros Antônio Palocci, Aloizio Mercadante e Guido Mantega, o cientista político André Singer, o marqueteiro Duda Mendonça, o eleitor Alfeu Dick e Silva – que toma com Lula uma carona de avião –, cada um deles experimentou a ascensão e a queda de seus anseios e projetos pessoais e políticos.
Desilusão
“Desde o mensalão, a minha sensação é de ter perdido alguém da família. Fiquei muito decepcionado. Eu militei, pegava minha bandeirinha vermelha e ia para a rua, sem ganhar nada. Na minha época, não tinha mortadela. Nem a bandeira tenho mais, doei como tecido para alguma campanha de agasalho”, relata Alfeu. Seu discurso não lembra em nada o do rapaz que, entre esbaforido e encantado, contava para a câmera de Moreira Salles que perdera um voo de carreira e estava arrasado no aeroporto quando viu seu candidato despontar no saguão. “Só um abraço dele podia salvar meu dia”, diz. Alfeu ganhou o afago e um assento no apertado jatinho em que Lula viajava para Porto Alegre em campanha.
No mesmo voo, um bem-humorado Palocci engolia sem reclamar um morno sanduíche de frango. Em poucos meses, ele se tornaria o lastro do governo petista junto ao mercado e um dos principais formuladores econômicos da nova gestão. A carreira política, considerada brilhante até pelos opositores do PT, foi abreviada por escândalos como a quebra do sigilo bancário do caseiro que denunciara sua presença em uma casa de lobby e pela mal explicada riqueza acumulada com uma assessoria. Hoje, Palocci se encontra esporadicamente com Lula. Para isso, entra pela garagem do instituto do ex-presidente, em São Paulo. Sabe que seu capital político foi arruinado e que sua presença pode causar dissabores ao ex-presidente.
Pelas sombras também anda o marqueteiro Duda Mendonça. No documentário, ele corrigia a entonação de cada frase com as quais Lula se dirigia ao eleitor, lapidando o estilo “paz e amor” que convenceria os votantes mais renitentes e o transformaria por alguns anos no Midas do marketing político. Em 2005, foi obrigado a reconhecer que seus serviços tinham sido pagos por meio de caixa dois. Retirou-se da carreira política. Em 2016, não fará nenhuma campanha. Sua derrocada abriu espaço no PT para seu ex-sócio, o jornalista João Santana, que, depois de preso, acaba de negociar delação premiada com a força-tarefa da Operação Lava Jato.
Conselheiros
Enquanto em 2002, Lula era acusado por adversários e pela imprensa internacional de representar uma ameaça vermelha no Brasil, o futuro porta-voz André Singer lhe dava um lastro acadêmico para dirimir os rumores. Ao lado de Singer, Frei Betto, que no filme faz uma reza durante a apuração dos votos, eram dois dos mais importantes conselheiros do ex-presidente. Nenhum dos dois recebe há anos um telefonema de Lula. Críticos dos rumos do partido, ambos expressam suas opiniões por meio dos jornais.
Em Entreatos, Mantega trabalhava nos bastidores junto aos economistas, e o então candidato a senador Aloizio Mercadante circulava ao lado de Lula e tentava angariar apoio entre empresários. Mais do que nas gestões de Lula, ambos se tornaram destacados homens fortes na gestão Dilma. Ministro da Fazenda, coube a Mantega arcar com o desgaste da crise econômica. Foi demitido pela presidente em campanha em 2014, durante uma entrevista. Hostilizado nas ruas, retornou à Fundação Getulio Vargas, onde se dedica a palestras e estudos econômicos. Seu nome aparece citado por Santana e sua mulher, Mônica Moura, como um dos interlocutores com quem negociaram pagamentos irregulares de campanha. Na conta de Mercadante, chefe da Casa Civil de Dilma, foi debitado o fiasco da articulação com o Congresso Nacional no segundo governo Dilma. Fuzilado até mesmo por correligionários, submergiu. Mas se manteve fiel à ex-presidente até o fim do julgamento do impeachment.
Em um salão de beleza simples de São Paulo, um compenetrado barbeiro, Fernando Luiz da Silva, aparava os fios da barba de Lula enquanto ele dava entrevista a uma rádio pelo celular. Lula soterra Silva com comentários, sugeria leituras, elogiava a si mesmo e garantia que voltaria na semana seguinte como presidente eleito. Em 2016, Silva segue aparando barbas e cabelos na mesma rua em que começou, em 1994, a atender Lula. Desde 2006, quando Silva, atribulado, recusou-se a se deslocar para trabalhar para o então presidente, Lula nunca mais o procurou. Silva nega ter ficado chateado. Perguntado sobre suas opções políticas, ele é direto: “Nunca votei nele porque nunca acreditei. E hoje não acredito em ninguém. Na última eleição, anulei. E vou fazer isso na próxima também”.