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 | Marcelo Elias/Gazeta do Povo
| Foto: Marcelo Elias/Gazeta do Povo

Considerado um dos principais historiadores jurídicos do mundo, o italiano Pietro Costa, professor de História do Direito da Universidade dos Estudos de Florença, acompanhou de perto o resultado do segundo turno das eleições no Brasil e viu a primeira mulher ser eleita presidente. Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, o estudioso dos sistemas democráticos considerou o fato um sinal de saúde democrática do país e fez considerações sobre o presente e o futuro das democracias. Costa passou uma temporada de cerca de um mês em Curitiba, na qual ministrou o curso "Poucos, muitos, todos: lições sobre história da democracia", na pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e lançou a obra Soberania, Repre­­sentação, Democracia: ensaios de História do pensamento jurídico (Juruá Editora).

O Brasil acaba de eleger sua primeira presidente. Em que me­­dida esse fato é importante pa­­ra a democracia?

Parece-me um fato bastante im­­portante. Recordemos que a ques­­tão de gênero foi um critério de exclusão política por muito tempo. Esse problema já foi resolvido em todas as democracias, po­­rém, são ainda poucos os casos em que uma mulher ocupa o cargo mais alto. O fato de o Brasil ter eleito uma mulher é um sinal de saúde democrática do país.

A presidente eleita Dilma Rous­­seff era desconhecida da grande maioria da população até pou­­co antes das eleições e se atribui sua vitória à enorme popularidade do presidente Lu­­la. Como o senhor analisa, em uma democracia, a existência de um líder com tamanha aprovação popular?

Esse tipo de líder é um elemento interessante. É verdade que o excesso de popularidade poderia ser perigoso. Seria, seguramente, se não houvesse mecanismos constitucionais que garantissem a alternância de poder. Feliz­­mente, esse não é o caso do Bra­­sil. Existe um limite para a renovação de mandato. Aliás, parece-me um sinal de maturidade de­­mocrática brasileira o fato de que um líder tão popular tenha seguido os ditames da Consti­­tuição.

Tamanhos índices de aprovação, no entanto, abrem caminho a medidas autoritárias, sobretudo em outros países da América Latina. Em geral, esse tipo de ataque à democracia co­­meça com atentados à liberdade de imprensa e tentativas de controle da mídia. O quão im­­portante é a liberdade de ex­­pres­­são para a democracia?

A liberdade de expressão é um dos direitos mais importantes para a saúde da democracia. Ela não pode existir sem liberdade de confronto de opiniões. É preciso também dizer que, não só no Brasil, mas em todas as democracias atuais, o problema da liberdade de expressão pode ser considerado um perigo, tendo em vista a influência que grandes concentrações econômicas têm sobre o sistema de mídia de massa.

O deputado federal mais votado nessas últimas eleições brasileiras foi um palhaço, o Tiri­­rica, que afirmava não saber o que um deputado faz. Esses vo­­tos foram considerados por muitos analistas como "votos de protesto". O que o senhor pen­­sa desse fenômeno?

Esse tipo de protesto é recorrente nas democracias. Se permanece um fenômeno marginal, podemos considerar o caso como um episódio folclórico, que não incide diretamente no estado de saúde da democracia. Pelo que sei, esse parece ser o caso do episódio do Tiririca.

A redemocratização do Brasil ocorreu há menos de três décadas. Como o senhor avalia a no­­va democracia brasileira?

A democracia brasileira é muito recente se compararmos com a Grã-Bretanha e não tão recente assim se compararmos com a Itália. Na Itália, temos um sistema democrático a partir do pós-Segunda-Guerra, de 1945. En­­contro analogias superficiais entre Brasil e Itália de 1950 a 1970, sobretudo no aspecto do esforço que a Itália teve nos anos 1950 e que o Brasil está tendo agora para diminuir um excesso de desigualdade no corpo social.

O jornalista britânico Gerald Bar­­ry dizia que "democracia é o regime em que você diz o que quer e faz o que mandam". De fato, parece haver um descompasso entre o que o povo quer e o que os representantes eleitos fazem. Há uma crise no sistema democrático? Poderia responder com uma provocação: a democracia está em crise desde o mo­­mento em que nasceu. A verdade é que ela sempre criou muitas e altas expectativas e, consequen­­temente, muitas ilusões. É verdade, porém, que no presente, ao menos na Europa ocidental, há elementos de crise na democracia. Por exemplo, a escassa representação dos partidos políticos em relação à sociedade, a concentração do sistema de mídia de massa, que torna difícil a expressão da opinião dos cidadãos, e, como pano de fundo, a crise do es­­tado de bem-estar social (Wel­­fare State) na Europa ocidental. São três elementos que permitem falarmos de crise da democracia na Europa ocidental.

Mas há alguma boa alternativa à democracia?

O elemento de força da democracia é exatamente este: não parece existir hoje uma proposta de regime político que seja mais re­­comendável que a proposta de­­mocrática.

A Constituição de 1988 lançou as bases da democracia brasileira, mas é muito criticada por ser detalhista em demasia e utó­­pica, ao prometer o que o Esta­­do não consegue cumprir. Co­­mo o senhor analisa a questão?

Torno a fazer uma analogia en­­tre Brasil e Itália, pois essas características encontramos em muitas democracias constitucionais da segunda parte do século 20. Sem dúvida, essas constituições fazem promessas ambiciosas. De outro lado, são constituições-pro­­jeto. E a realização do projeto não é automática, pois depende do legislador, das forças políticas e dos recursos disponíveis no país.

Analistas políticos dizem que falta ao jogo democrático brasileiro uma direita forte e organizada. Na Europa e nos Estados Unidos, é comum se observar movimentos mais consistentes da direita – ainda que muitas vezes radicais e até folclóricos. O senhor concorda que faz falta uma direita mais atuante?

A característica principal da de­­mocracia é o confronto e a contraposição de posições políticas diversas. Portanto, falando abstratamente, quanto mais forem representadas todas as posições e interesses sociais, tanto mais a democracia será saudável e vital. Mas é difícil estabelecer uma te­­rapia a partir de cima. A sociedade se transforma, é fluida, em todos os países, inclusive na Eu­­ropa ocidental. Há tempos em que a esquerda é forte e a direita é fraca e há tempos em que a situação se inverte, novas forças po­­líticas emergem, como até extremas direitas racistas que vêm ocorrendo em diversos países eu­­ropeus. De todo modo, a democracia deveria estar apta a funcio­­nar de qualquer modo, aderindo às diversas situações concretas que uma sociedade encontra.

E posições tão radicais como as racistas e xenofóbicas, que atacam pilares do próprio sistema, são aceitáveis em uma democracia?

Há duas imagens da democracia, que se realizaram historicamente ao longo do século 20: uma que quer proteger a si mesma e outra mais disposta a enfrentar riscos maiores. Por uma democracia que protege a si mesma, quero dizer uma democracia que coloca fora da lei, fora do Direito, mo­­vimentos extremistas que atacam a própria democracia. Por exemplo, a justificação do ma­­carthismo nos Estados Unidos, não obstante o extremismo que essa posição acabou adotando, era justamente a justificativa de defender a democracia dos perigos, nesse caso do comunismo. Uma outra ideia de democracia é aquela que tem obediência aos critérios de liberdade de opinião, considerando legítimas inclusive expressões antidemocráticas. Saber qual das duas é mais recomendável depende das posições individuais. Dou muita importância ao princípio da liberdade de expressão e sou favorável ao mais amplo confronto de opiniões, desde que se sejam opiniões e não ações que ofendam os princípios fundamentais do ordenamento.

Qual é o futuro da democracia?

Naturalmente, não é possível fa­­zer previsões. Mas podemos fa­­zer constatações. Ela tem não só o presente, mas o futuro diante de si. Não podemos esquecer as dificuldades, os elementos de cri­­se dos quais já falamos, que naturalmente moderam o otimismo. Uma coisa certa se pode afirmar: não se pode exportar a democracia, como se exporta uma mercadoria. É um processo de cada povo, que se empenha e organiza seu próprio sistema. Uma democracia importada é uma contradição em termos.

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