Professor da Universidade de Barcelona, o espanhol Joaquin Brugé é uma autoridade em administração pública deliberativa. O conceito ainda é pouco conhecido do público em geral. Mas expressa uma das demandas políticas que mais cresce nas democracias contemporâneas: a criação, pelo poder público, de mecanismos para que os cidadãos e os diferentes níveis de governo se reúnam para discutir seus problemas e para propor possíveis soluções (a deliberação). Mas ele alerta: a deliberação não implica que os governos tenham de fazer tudo o que todos querem. Isso, para o professor, é um erro. É acreditar na ideia equivocada de que o cidadão é um cliente do Estado, que sempre tem razão. Brugé treinou funcionários da prefeitura de Curitiba sobre a administração deliberativa no início do mês, quando falou com a Gazeta do Povo.
Como o sr. conceitua a administração pública deliberativa?
É uma administração pública que entenda que os problemas dos cidadãos são muito complexos, com muitas dimensões. Quando uma pessoa tem um problema, ele não é só econômico, mas social, laboral, ambiental. Portanto, para dar respostas adequadas, a administração tem que relacionar todos esses aspectos, tem de colocá-los em conversação. A deliberação seria simplesmente dar uma resposta ao cidadão fazendo com que as diferentes dimensões do problema atuem em conjunto.
E como efetivar essa administração pública deliberativa? Qual é a forma de ação?
Essa é a dificuldade: passar para a prática. Sobretudo porque tradicionalmente as administrações, no Brasil e em todo o mundo, mais que buscar a interação, buscam a especialização. É um costume cada um trabalhar em seu hábitat. Temos que aprender a trabalhar com os demais, a fazer juntos o que antes fazíamos separados.
O trabalho em conjunto deve ser entre os diversos órgãos ou entre as várias esferas de governo?
É entre todos. O trabalho precisa ser transversal dentro da organização, entre diferentes departamentos. Mas também inclui diferentes níveis de governo. Toda a lógica deve ser mais vinculada à participação dos cidadãos. Para abordar um problema ambiental, por exemplo, é preciso trabalhar com os diferentes departamentos da municipalidade, mas também os diferentes níveis de governo, associações de moradores, entre outros.
Temos a questão de diferenças ideológicas e de grupos políticos nos três diferentes níveis de governo. Como ultrapassá-las?
A ideia é aprender a trabalhar juntos, mesmo sendo diferentes. Essa é a maior dificuldade: trabalhar juntos não significa que todos precisamos pensar igual; ou que temos de ter as mesmas prioridades políticas. Mas, simplesmente, temos de entender as posições dos outros, inclusive as discrepâncias, assumindo que temos que buscar os pontos de comprometimento e os pontos em comum. É claro que isso é mais fácil de falar do que de pôr em prática, porque a lógica política coloca uns contra os outros. Por isso, a administração deliberativa requer tempo para ser construída.
Na proximidade com as eleições, os serviços públicos, em geral, funcionam em "marcha lenta". Como a administração deliberativa pode atuar nesse sentido?
Falamos sobre mudança na mentalidade da administração e também precisamos mudar um pouco a mentalidade dos políticos. Se, para eles, a política é só ganhar eleições e satisfazer a determinadas clientelas para que votem nele na próxima eleição, seguramente, não vamos conseguir grande coisa ou uma administração mais eficiente. Temos que ir avançando e mudar a mentalidade não só dos técnicos da administração pública, mas também da própria política. Não é ganhar uma eleição. É um projeto de sociedade. Há também de se mudar a mentalidade dos cidadãos. Muitas vezes os políticos atuam como atuam porque o cidadão se coloca para o político como um cliente, que só vota se o político lhe dá algo. Por isso precisamos mudar a mentalidade da administração, do político e dos cidadãos. É um processo no qual tempo é uma variável importante.
Como a administração pública pode atuar nessa mudança de padrão cultural?
É muito importante que a administração pública se dirija ao cidadão e não ao cliente. E nesse sentido, temos de evitar uma frase que tem tido muito êxito nos últimos anos, que é: "O cliente tem sempre razão". Isso vale para as relações comerciais, mas não para a relação entre o cidadão e a administração pública. Isso exige valentia por parte dos políticos. Nem sempre a administração está lá para responder a todas as demandas ou para satisfazer a todas as vontades. Na política não é assim. Até porque é impossível dar razão a todo mundo. Se o governo diz aos agricultores ou aos industriais que eles sempre têm razão, isso nos leva a uma situação sem saída. Você não pode fazer a política que maximize a satisfação simultânea de todos os atores diferentes. A política é equilíbrio de interesses. Portanto, a administração pública deve explicar aos cidadãos que a missão não é que estejam todos felizes, mas precisa gerir as frustrações de uns e de outros.
Isso exige que o administrador tome algumas decisões. Ele precisa decidir, equilibrando a deliberação e a decisão?
A administração é um exercício de autoridade. Autoridade se ganha depois de ter sido transparente, de ter escutado as pessoas, de ter deliberado. Aí, efetivamente, esse processo vai culminar num exercício de autoridade. Porque a política existe porque há um conflito de interesses, que é legítimo. Isso é normal: um ecologista não quer o mesmo que um agricultor ou um industrial. E como não vão estar de acordo, a política vem para fazer esse papel.
Como ela pode funcionar, na prática?
Primeiro temos de ter claro que o objetivo é a aprovação de uma política pública concreta. A partir disso, passamos por três etapas em um processo deliberativo. Uma primeira é informar. Se eu quero falar com os cidadãos e os diferentes atores sobre como vai ser uma determinada política pública, tenho que explicar do que estamos falando. Quando a administração pública lança um processo deliberativo, tem que explicar ao cidadão que nem tudo é possível. Que há limites econômicos, administrativos e políticos. Se, na Espanha, você for fazer um debate sobre imigração, tem gente que vai defender algum posicionamento extremo. O primeiro passo é explicar que essa opção não faz parte do debate. A segunda fase é escutar e organizar debates. É a fase de propiciar espaços, mecanismos, de debate. E em terceiro lugar, uma vez que escutou o cidadão, é preciso responder. Depois de um debate, se o cidadão faz uma sugestão, a administração vai responder: "Não vou fazer tal coisa, por tais razões". Nessa última fase, é que acontece o exercício de autoridade. O processo acaba na aprovação de um plano de gestão que foi construído de forma deliberativa, mas que depende desse processo final de tomada de decisão.
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Em rota contra Musk, Lula amplia laços com a China e fecha acordo com concorrente da Starlink
Deixe sua opinião