O conflito entre o Poder Judiciário e Congresso Nacional ultrapassou os limites institucionais de forma grave. A sucessão de atos descomedidos durante a semana que passou (veja uma cronologia abaixo) por si só já seria perigosa por colocar em risco o próprio ambiente democrático. Neste momento de aguda crise econômica, os desencontros adquirem contornos ainda maiores, uma vez que a falta de harmonia entre os poderes tende a dificultar a criação de um consenso nas reformas que o país precisa fazer. Os fatos foram tão inusitados que não existe uma análise unidirecional que dê conta de explicá-los de forma satisfatória. Há, entretanto um ponto de concordância: sem respeito ao império das regras legais e, portanto, ao Estado de Direito, dificilmente a situação será superada.
Semana termina com dúvidas sobre a continuidade do governo Temer
Para completar uma semana complicada no relacionamento entre os poderes, as primeiras informações sobre a “megadelação” da Odebrecht começaram a ser divulgadas na sexta-feira (9).
No início do dia, o jornal Folha de S.Paulo publicou que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), recebeu R$ 2 milhões via “caixa 2” da empreiteira.
Durante a tarde, o site Buzzfeed News e a Revista Veja deram detalhes da delação de um ex-executivo da Odebrecht, que relatou que o presidente Michel Temer (PMDB) pediu pessoalmente ao então presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, R$ 10 milhões durante a campanha de 2014.
Também durante a tarde, a revista IstoÉ trouxe detalhes da delação de Marcelo Odebrecht, com o pedido de R$ 4 milhões, por parte da ex-presidente Dilma Rousseff, para quitar dívidas da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) em sua campanha do governo do Paraná, também em 2014.
O momento frágil vivido pela administração Temer, atingida por sucessivos escândalos desde sua posse definitiva, suscita a possibilidade de sua queda. Caso ela ocorra até o fim de 2016, serão realizadas eleições diretas. Caso ocorra a partir de 2017, haverá eleição indireta, com voto limitado aos integrantes do Congresso Nacional. Mas, neste caso, ainda há importantes lacunas de legislação que podem trazer ainda mais instabilidade política ao país.
“O momento tem de ser de serenidade para o fortalecimento das instituições”, afirma o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cláudio Lamachia. Na avaliação dele, os poderes não podem entrar nessa linha de confronto que a nação assiste. “Se isso continuar não chegaremos a lugar algum, é preciso superar esse momento. Ao mesmo tempo, tenho defendido que o Brasil seja passado a limpo, combatendo a impunidade onde ela estiver”, afirma.
Segundo Lamachia, há um clima de intolerância na sociedade que era inimaginável há poucos anos. E esse convívio conflituoso dificulta encontrar uma linha de consenso nas medidas a serem tomadas tanto para debelar a crise econômica quanto para combater a corrupção. “Menos arrogância, mais tolerância é algo que vale para todos, a sociedade, os políticos. O que precisamos agora é construir consensos.”
Para o professor de Ciência Política Emerson Cervi, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), diferentemente dos congressistas de décadas passadas, a geração atual de representantes do Poder Legislativo tem dificuldades de negociar. “Só dialoga com quem está do mesmo lado, não negocia com quem pensa diferente. Essa postura faz com que a parte derrotada se torne irresponsável, porque não participou de fato do processo decisório”.
Segundo Cervi, os fatos da semana não indicam crise do Estado de Direito, mas uma severa crise de lideranças. “É que pela primeira vez, ao menos no Brasil recente, essa crise de liderança atingiu a cúpula do Judiciário, que passou a se comportar de forma similar ao do Executivo e do Legislativo, participando inclusive cada vez mais do debate público, o que era incabível na geração anterior”.
Novas demandas
Apesar do acirramento do conflito entre o Legislativo e o Judiciário, as instituições brasileiras e o Estado de Direito, afirma o professor de Direito Constitucional Egon Bockmann Moreira, continuam fortes. Mas a realidade atual, explica ele, é muito diferente do que há quase trinta anos, quando a Constituição foi promulgada.
No novo cenário, afirma o professor, o equilíbrio entre os poderes é posto à prova a todo o momento por fatos que não se encaixam na divisão tradicional de papéis do Executivo, Legislativo e Judiciário. “Hoje esse equilíbrio é dinâmico, ocorrendo, por vezes, excessos e troca de papéis entre os atores políticos. Se comparado com agora, o mundo de 1988 é um jardim de infância perto dos desafios que a gente tem hoje. O cenário em que o STF atua é complexo, o constituinte nem em pesadelo sonhou com isso”.
Para Bockmann Moreira, atualmente não há mais um cenário em que um magistrado pode controlar de forma clara a Constituição. “Muito do que se vê hoje está em conformidade com esse dinamismo. A Constituição é colocada em teste a todo o momento e não tem como se prever o futuro”.
A degradação do poder ao redor do mundo
Em todo o mundo o poder está passando por uma transformação histórica. Vai se dispersando dos grandes atores tradicionais – como governos, grandes corporações, sindicatos – para novos agentes, de tamanhos menores e possuidores de menos recursos. Tecnologias, redes de solidariedade e novos valores fazem com que o poder sofra uma espécie de “degradação”. Segundo o pensador Moises Naim na obra O Fim do Poder, no século 21 o poder tornou-se “mais fácil de se obter, mais difícil de se utilizar e mais fácil de se perder”.
Ao se observar os fatos recentes da política brasileira, a análise de Naim é bastante útil para compreender o momento presente. O avanço da força tarefa da Operação Lava Jato sobre as operações criminosas de parte considerável da elite política do país e a vigilância da opinião pública – formada por mídia tradicional, entidades do terceiro setor e redes sociais – têm impedido, ao menos por enquanto, que os parlamentares afrouxem os mecanismos de investigação, a fim de perpetuar a impunidade. Esses dois fatos são evidência de quanto o poder começa a se diluir, de atores políticos todo poderosos, para recair em mãos de agentes de menor influência.
“Estamos vivendo o ocaso de uma era”, analisa o professor de Direito Constitucional Egon Bockmann Moreira. “Os parlamentares estão se comportando de uma forma parecida com os exércitos de Gêngis Khan. São saqueadores, sabem que não vão voltar e que o tempo em que dominavam o Congresso não vai ter retorno.”
Para explicar o raciocínio Bockmann Moreira dá dois exemplos. Ele afirma que jamais os parlamentares poderiam fazer uma sessão na madrugada na Câmara dos Deputados para, em meio a uma tragédia nacional na economia e na política, criar uma blindagem contra os crimes que parte deles próprios cometeu. “Não é coisa de gente séria, posso concordar ou não, mas teria de ser feito à luz do dia.”
O professor critica também a recusa de Renan Calheiros em receber citação do oficial de Justiça. “Ele demonstrou ter um imenso poder político, capaz de colocar o Estado refém de sua vontade. Ao mesmo tempo, ao se colocar acima do STF, não é algo normal. Muito provavelmente está se sentindo vulnerável.”
O longo caminho para a transformação cultural
Para uma democracia funcionar bem não basta ter instituições sólidas, com regras bem definidas – há a necessidade de que a cultura política e de participação estejam desenvolvidas, a fim de evitar que decisões equivocadas minem o ambiente institucional. O ponto central da questão é que mudanças culturais são longas e demoradas. “Elas não acontecem de uma hora para outra”, explica Fernando Belmonte Archetti, pesquisador do Instituto Atuação. “Em alguns momentos críticos mudanças de cultura podem acontecer de forma rápida e em grandes proporções, mas isso é raro.”
Archetti avalia que o momento que o Brasil pode estar vivendo o seu momento crítico e que a transformação cultural pode ser acelerada. “Mas em geral isso ocorre lentamente, começando por formadores de opinião e depois se multiplicando junto a públicos maiores. Primeiro ocorre a disseminação de opiniões e comportamentos em pequenos grupos, até se consolidar em padrões culturais.”
Mesmo que as alterações na cultura política demorem a se consolidar, sempre há o que fazer desde já. Segundo Fabro Steibel, diretor executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade, a fim de ampliar o espaço de debate democrático é preciso compartilhar ideias e debatê-las. “Nas redes sociais é preciso dar relevância para informação verdadeira. Compartilhar conversas, não estimular rupturas.” Steibel enfatiza a importância de, numa democracia, se buscar o consenso e evitar o radicalismo. “Hoje as decisões partem de posições extremadas, o que cria dificuldade para se chegar a consensos.”
Diário de dias ruins
A semana que passou trouxe uma série de eventos preocupantes de desrespeito às regras legais e institucionais do país
Dia 5 – Em caráter provisório, o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, afasta Renan Calheiros da Presidência do Senado.
Problema: A decisão é questionável por não haver extrema urgência ou perigo de grave lesão para a concessão de liminar. Mello a fundamentou em julgamento ainda não concluído, no qual a maioria do STF se manifestou com o entendimento de proibir a permanência de réu na linha sucessória da presidência da República. Além disso, Renan Calheiros está em fim de mandato na Presidência do Senado e é remota a chance dele assumir a Presidência da República.
Dia 5 – Renan se recusa a assinar notificação de afastamento.
Problema: O senador vai para o enfrentamento, em desrespeito à ordem judicial – comportamento avesso ao que se espera de um dirigente de poder. Por mais que a decisão fosse injusta, jamais caberia a Calheiros a decisão de a desobedecer. O correto seria aguardar o julgamento do recurso.
Dia 6 – A Mesa do Senado se recusa a afastar Renan Calheiros da presidência da casa legislativa.
Problema: Os integrantes da Mesa desobedecem a decisão judicial que pede o afastamento de Renan Calheiros, em mais um episódio de embate entre Legislativo e Judiciário. Mais uma vez, por mais que se entendesse que a liminar estava equivocada, jamais a Mesa do Senado poderia recusar de cumpri-la. Além de violar de forma grave a ordem constitucional transmite a mensagem para a sociedade de que políticos eleitos estão acima da lei.
Dia 7 – Por seis votos a três, o STF mantém Renan na chefia do Senado. O episódio é visto como uma vitória de Renan Calheiros. Para parte da opinião pública, independentemente de erro ou acerto da decisão do pleno do Supremo, a corte sai com a imagem arranhada.
Dia 8 – Em contradição com o próprio comportamento, e após vencer a queda de braço no STF, Renan afirma que decisão judicial é para se cumprir.
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