A mesa de madeira já gasta fica ao fundo do cômodo onde está improvisada a biblioteca do Complexo Médico-Penal (CMP), em Pinhais. Sobre o móvel, ficam parcos materiais de escritório – um porta-canetas e um durex –, além do computador que tem acesso restrito ao sistema de catalogação de livros.
É ali que o ex-ministro José Dirceu trabalha seis horas por dia, como coordenador da biblioteca.
A atividade faz parte de um programa que prevê que a cada três dias trabalhados, o preso tenha um dia abatido da pena. Detido na unidade, Dirceu está condenado a mais de 20 anos de prisão, em processo decorrente da Operação Lava Jato.
FOTOS: Veja imagens da rotina dos presos no CMP
A biblioteca do presídio está instalada em um salão sob o auditório do CMP, localizado no meio do longo corredor que dá acesso às galerias onde os presos estão encarcerados. Para chegar ao local de trabalho do ex-ministro, é preciso descer um lance de degraus cercados por grades.
Trata-se de um anexo com pé-direito baixo (de pouco mais de dois metros de altura), sem janelas e um tanto claustrofóbico, iluminado por lâmpadas frias, algumas das quais estão com mau-contato. Em uma das paredes, está grafado em letras douradas “Ler é voar por caminhos infinitos”.
Frase grafada na entrada da biblioteca do CMP
Os cerca de quatro mil livros estão distribuídos em prateleiras dispostas junto às paredes. O acervo está sendo catalogado pelo próprio Dirceu, de acordo com parâmetros internacionais. O processo de organização, aliás, já está quase no fim. Foi ele quem separou os livros em seções, os etiquetou e os cadastrou no sistema digital.
Cabe ao ex-ministro, ainda, atender aos pedidos de empréstimos feitos por outros detentos e registrar as retiradas e devoluções no sistema, além de sugerir títulos.
“O Zé Dirceu revolucionou a biblioteca. Fez um trabalho lindo. Antes, tudo estava desorganizado, jogado. Ele fez um trabalho de bibliotecário mesmo, organizou tudo, catalogou, deixou com cara de biblioteca”, definiu a advogada Isabel Kügler Mendes, presidente do Conselho da Comunidade na Execução Penal.
O acervo conta com alguns títulos relacionados à investigação que levou Dirceu à cadeia. Estão entre eles, “A outra história da Lava-Jato” (Paulo Moreira Leite), “Lava Jato” (Vladmir Neto) e “Cartas a Lula” (Bernard Rucinski).
O curioso é que os exemplares foram doados por condenados da operação, que receberam os livros de familiares. As estantes contêm, ainda, obras como “O filho eterno” (Cristóvão Tezza) e “Os últimos soldados da guerra fria” (Fernando Morais).
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Leia a matéria completaRemissão pela leitura
Entre os frequentadores assíduos da biblioteca, estão outros presos da Operação Lava Jato – quando a Gazeta do Povo visitou o presídio, eram oito. Eles participam de um programa de remissão pela leitura, do qual fazem parte 95 detentos.
Cada interno deve ler um livro por mês, em troca de quatro dias abatidos da pena. Para ter o desconto, no entanto, o interno precisa escrever uma resenha crítica sobre a obra que leu e obter nota superior a 6.
“Eles fazem a leitura nas celas. Depois, fazem a resenha em sala de aula, na minha presença”, explicou a professora Marta Carvalho. “Em geral, eles [os presos da Lava Jato] vão bem. Mas nem todos se esmeram, não”, completou a pedagoga Lucimara Vidolin.
As educadoras chegaram a ficar um pouco intimidadas quando a penitenciária começou a acolher engenheiros que foram presos na Lava Jato. “Eram todos doutores. A gente não sabia como eles reagiriam ao serem corrigidos, por exemplo”, apontou Marta. Os políticos, por sua vez, têm sido de fácil trato. “São pessoas de uma cultura imensa”, destacou a professora.
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Leia a matéria completaEntre as preferências de leitura dos “alunos” provenientes da Lava Jato, estão clássicos como Shakespeare, Homero e Victor Hugo, e autores nacionais, como Clarice Lispector e Milton Hatoum. Também têm sido disputados dois títulos específicos, relacionados à política. “Muitos procuraram ‘O Príncipe’ (Nicolau Maquiavel) e ‘A revolução dos bichos’ (George Orwell)”, destacou Lucimara.
No último mês, um dos políticos presos no CMP – e que não teve o nome revelado – se encantou ao ler “As madonas de Leningrado” (Debra Dean), obra que tem como protagonista a curadora do Heritage Museum, de São Petesburgo, na Rússia. “Ele disse: ‘Eu ia muito a esse museu e ler o livro foi como estar lá de novo e rever todas aquelas obras’”, contou a professora Marta.
Além da remissão pela leitura, alguns dos internos da Lava Jato frequentam ou frequentaram cursos profissionalizantes, ministrados dentro da penitenciária.
O ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa (que hoje está no regime aberto), chegou a concluir um curso de “Eletroeletrônica”, mas o diploma expedido pelo Sesi permanece sobre a mesa das educadoras, no CMP. Ao deixar o prédio da Justiça Federal nesta semana, onde prestou depoimento, Costa não respondeu à reportagem, que perguntou se ele voltaria ao presídio para pegar o certificado.
Na 6ª galeria
Os condenados da Operação Lava Jato estão encarcerados na 6ª galeria, onde ficam, no máximo, três presos por cela. Dirceu divide a sua com o ex-deputado Luiz Argôlo. O ex-ministro é tido pelos funcionários como um preso de bom comportamento, de poucas palavras, mas cordial e digno. Não costuma reclamar das condições em que se encontra e parece enfrentar com estoicismo as agruras do cárcere.
“Ele não conversa nem com os outros presos. A gente só vê ele falando com o Argôlo”, disse um agente penitenciário, que pediu para não ser identificado. “Mas sempre foi muito educado, sempre tratou todo mundo muito bem, com humildade mesmo”, acrescentou.
A 6ª galeria chama a atenção pela limpeza. São os próprios presos que trabalham na higienização das alas e das celas, usando para isso produtos fornecidos pelos familiares. Por muito tempo, o ex-deputado André Vargas – condenado a 14 anos de prisão – foi o responsável pela logística da faxina.
“Nos outros [anexos] o cheiro é terrível. Nos da Lava Jato, tem cheiro de limpeza, porque são eles que limpam tudo. Eles estão autorizados a receber material de limpeza da família. Então, as famílias mandam os produtos e eles limpam tudo”, disse a advogada Isabel Kugler Mendes.
Além disso, o espaço está mais bem conservado que o restante da unidade. Segundo um agente, a 6ª galeria foi construída em 2008 e só em 2010 começou a receber presos. Além do pouco tempo de uso, o “perfil” dos detentos também contribuem para a manutenção do espaço. “Esse pessoal da Lava Jato não é o tipo de preso que fica fazendo bate-grade, que picha ou cavouca a parede da cela. Então o espaço é mais ajeitado mesmo”, disse o agente penitenciário.
Sem regalias
Hoje, o trabalho de Vargas é distribuir marmitas com as refeições dos detentos da 6ª galeria. Diferentemente do que se possa supor, os condenados da Lava Jato não têm direito a regalias: comem o mesmo que o resto da prisão. Está vetada a entrada de alimentação especial aos detentos, ainda que fornecida pela família.
Segundo os funcionários do CMP, os políticos encarcerados têm aceitado as restrições.
“Quando a gente tem que vetar alguma sacola de preso ‘comum’, eles batem o pé, gritam, ameaçam ‘virar’ a unidade. Os da Lava Jato, não. A gente explica que aquele item não está na lista autorizada, eles entendem”, contou um agente. “Eles comem a comida comum”, completou.
A “comida comum” varia de acordo com o dia da semana. Quando a reportagem visitou o CMP – na segunda-feira –, o cardápio do jantar era uma quentinha com feijão, arroz, macarrão sem molho e um pedaço de carne. Como acompanhamento, os presos receberiam um pedaço de pão e uma salada verde, servida em saco plástico.
Os presos de todo o CMP, no entanto, podem se gabar de um pequeno luxo: há água quente para o banho. Além das penitenciárias exclusivamente femininas, o Complexo Médico-Penal é a única unidade do estado em que há chuveiros aquecidos. Os detentos também podem assistir tevê, em aparelhos fornecidos pelas respectivas famílias.
Além de Dirceu e Vargas, a 6ª galeria do CMP também detém o ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, condenado a nove anos de prisão. Os três são considerados os mais familiarizados à rotina do presídio. No extremo aposto, há maior preocupação em relação a Branislav Kontic, ex-assessor de Antonio Palloci.
Ele foi transferido ao CMP depois de ter ingerido 40 comprimidos na sede da Polícia Federal (PF), onde está detido. No Complexo Médico-Penal, Kontic vem sendo submetido a tratamento psiquiátrico. “Pelo que a gente ouve, ele está melhorando. Mas vá saber...”, apontou outro agente.
Os presos da Lava Jato não andam com o tradicional macacão alaranjado do sistema prisional do Paraná, mas com trajes civis – calça de moletom ou de tactel, camiseta branca e tênis ou chinelos. A falta de uniforme, no entanto, não se trata de uma exclusividade dos presos políticos: decorre da falta de roupas fornecidas pelo estado, conforme a reportagem apurou. Em um ambiente prisional - ainda que em aparentes melhores condições que outros presídios comuns -, o modo de se vestir parece ser o que menos importa.