Entre queixas e negociações, as ligações do ex-presidente Lula interceptadas pela Polícia Federal são recheadas de um linguajar que passa longe do politicamente correto. O ex-presidente perguntou onde estão “as mulher de grelo duro” do PT e brincou que a diretora do Instituto Lula, Clara Ant, acordou achando que era “presente de Deus” quando cinco homens entraram em sua casa – até descobrir que eram policiais federais.
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Em outra conversa, do outro lado da linha, o ministro Jacques Wagner, quando soube que a ex-petista Marta Suplicy foi vaiada durante o protesto na Avenida Paulista no último domingo (13), afirmou que “é bom pra nega aprender”. E, quando o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, pediu para que Lula deixasse de ter “alma de pobre”, o ex-presidente riu.
Especialistas entrevistados pela reportagem acreditam que os telefonemas reproduzem fielmente preconceitos conhecidos e historicamente resistentes, mesmo em homens que, em público, exaltam a igualdade social e de gênero.
O uso da expressão “grelo duro” dividiu as redes sociais, entre os que a consideram pejorativa e outros que a veem como uma manifestação de força. Professora titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bila Sorj lamenta a “visão comum” reproduzida no diálogo do ex-presidente. “É um discurso depreciativo, com termos sexualizados para desqualificar as mulheres”, diz. “Existe uma vigilância social sobre esse tipo de fala entre figuras públicas. Mas trata-se de uma ligação gravada entre dois homens. E acredito que o mesmo tom poderia ocorrer com muitas pessoas e em várias situações. Não se trata de algo específico do Lula.”
Bila, no entanto, acredita que uma conversa como a do ex-presidente seria menos comum entre as gerações mais novas: “O Lula tem 70 anos. Homens de sua idade usam essa linguagem sem nenhuma autocensura. Entre os jovens, seria menos frequente, ou pelo menos eles se sentiriam mais constrangidos. Aos poucos o comportamento da sociedade está mudando”.
Expressão regional
Escritora e ativista feminista, com mais de 17 mil seguidores no Facebook, Stephanie Ribeiro defendeu em sua página a expressão de Lula e lembrou as origens do ex-presidente: “Só lembrando que Lula é nordestino, e ‘grelo duro’ é uma expressão usada nessa região do país. E é no sentido de mulher porreta”.
Lúcia Helena Rincón Afonso, coordenadora Nacional da União Brasileira de Mulheres, condenou a ligação em que Lula conta que Marta Suplicy foi chamada de “puta”, provocando risos do ex-ministro Jacques Wagner, que retruca: “É bom pra nega aprender”. “Isso mostra como o preconceito está internalizado, faz parte da fala do adversário”, diz. “Pode causar má impressão para todo lado, o que mostra a importância de estudar a perspectiva de gênero.”
A fala de Lula sobre Clara Ant também pode ser vista como uma manifestação do machismo enraizado na sociedade brasileira, diz a pesquisadora da UnB e socióloga Ana Liési Thurler. “No Brasil quase todo humor que se faz é sexista, racista, homofóbico. Ele nesta fala representa o brasileiro no estado mais natural, fez uma brincadeira que reflete a cultura machista brasileira”, analisa. “O sexismo ainda está muito impregnado em nossa cultura, inclusive nos políticos de esquerda, que historicamente têm bandeiras relacionadas à igualdade de gênero. Ele não escapa de alguma dose de sexismo. Acho que não é o seu cotidiano, mas aponta para o machismo que ainda persiste.”
“Alma de pobre”
Além do palavreado chulo por parte da população, outro diálogo gerou furor na opinião pública. A conversa aconteceu entre Lula e o prefeito do Rio, Eduardo Paes. Na fala, Paes critica a “alma de pobre” do ex-presidente e debocha de cidades do interior do Rio, como São Pedro da Aldeia, Araruama e Maricá. Para o sociólogo Paulo Baía, da UFRJ, as conversas carregam essa características – palavrões e piadas politicamente incorretas – por terem acontecido em foro íntimo e geram indignação por quebrar a expectativa das pessoas sobre a figura do homem público.
“As conversas que foram tornadas públicas trazem um toque coloquial e informal, ao mesmo tempo que manifestam desejos publicamente inconfessáveis”, afirma. “O discurso tomou essa dimensão por ter vindo a público e por não ser o tipo de conversa que qualquer pessoa faz em público. Trata-se de algo que se faz entre quatro paredes e que, quando é exposto, entra em contato com o tato social.”
Segundo ele, esse conflito acontece porque se espera que os políticos tenham uma postura ética exemplar: “As pessoas que ocupam cargos públicos ou são celebridades devem tomar muito cuidado nas conversas individuais, sobretudo políticos, porque há uma linha tênue que separa o que é privado do que é público. Em tese, agentes públicos não têm vida privada. A população espera deles um comportamento dentro de componentes éticos e morais aceitos pela sociedade”.
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