A palavra "mordomia" entrou no vocabulário cotidiano dos brasileiros em 1976, em função de uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. A matéria, assinada por Ricardo Kotscho, se chamava "Assim vivem os nossos superfuncionários", e revelava vantagens que os favorecidos da administração Geisel ganhavam. Isso, claro, enquanto a população vivia a penúria típica de um país de terceiro mundo, como se dizia então era um tempo antes do uso do eufemismo que nos transformou em "emergentes".
Curiosamente, dois anos depois um outro jornalista escreveria sobre uma situação absurda que mostrava o máximo de regalias que um posto pode dar a alguém. Ryszard Kapuscinski, um polonês que passou boa parte da vida cobrindo assuntos da África, relatou em "O imperador" a vida de luxos de Hailé Selassié I. Imperador etíope durante 44 anos, Salassié tinha à sua disposição, por exemplo, um funcionário encarregado de pôr e tirar a almofadinha em que ele se sentava. Outro servia de "cuco" do imperador.
Em comum, nos dois casos de mordomias, o fato de haver ditaduras. Faz sentido. A democracia tem por base o fato de que todos devem ser iguais perante a lei. Quando alguns são tão desiguais a ponto de ter vantagens imensas só por seus cargos, alguém está perdendo algo. Toda mordomia significa que há algum excluído das benesses que está pagando, com o suor do seu rosto, pelo luxo e esplendor dos que lhe pesam sobre as costas.
Neste domingo, os repórteres Mauri König, Diego Ribeiro, Felippe Aníbal e Albari Rosa registraram um caso típico de mordomia. Registraram, portanto, um caso de afronta aos mais básicos princípios democráticos. Policiais usaram (será justo falar no passado?) carros pagos com dinheiro público para fazer de tudo: ir à praia, passear com a família e até ir ao bordel.
Não se trata de um mero desvio funcional. Não é como se um funcionário de uma empresa privada estivesse usando demais o telefone da sua mesa de trabalho. Estamos falando de gente que é funcionária da população, paga com dinheiro de impostos. E que trabalha na área da segurança pública num estado que teve 3 mil homicídios dolosos só no ano passado.
Na semana anterior, a série "Polícia Fora da Lei" já havia mostrado que havia desvios graves no setor. Delegacias que são pagas com dinheiro público, mas que não existem ou não funcionam, por exemplo. Agora, o problema ficou ainda maior. E o governo, embora esteja anunciando algumas medidas, não parece estar atuando à altura do que veio à tona.
Dois funcionários foram afastados temporariamente de suas funções. Mas as denúncias envolvem 12 pessoas, pelo menos. Oito delas fazem parte da cúpula da Polícia Civil. Como a população pode confiar nesta polícia? O governador do estado teria a obrigação de agir com energia, até mesmo para mostrar que está no comando da situação, que não deixará que tudo acabe em pizza. Mas, infelizmente, o governador não está nem mesmo presente. Decidiu, em meio a tudo isso, sair de férias, na Europa.
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