Há várias distorções possíveis sobre o que deve ser a escola. Uma delas é de que o ensino deve servir primordialmente para “preparar para o mercado”. A coisa ficou tão maluca que você vê gente escolher jardim de infância pensando no vestibular. A escola deve preparar a pessoa para conhecer o mundo em que vive: entender como ele funciona; saber se mover nele de maneira inteligente; e, claro, também para aprender, adiante, uma profissão.
A distorção que parte dos deputados estaduais pretende combater com o projeto da “Escola sem partido“ – aquela que transforma a sala de aula em centro de doutrinação política – existe mesmo. Não é mera fantasia da cabeça de certos políticos. Sempre há um professor mais interessado em promover seus interesses e as bandeiras de um grupo político, alguém que exagera. E faz sentido se preocupar com isso.
Um exemplo, e talvez o maior, do uso da escola como instrumento de doutrinação no Brasil ocorreu recentemente, no regime militar. Disciplinas que ensinam espírito crítico ao aluno, como Filosofia e Sociologia, foram banidas do currículo. Em seu lugar, entraram matérias que nitidamente tinham como objetivo defender os valores que eram caros ao regime – como OSPB e Educação Moral e Cívica.
Desde a redemocratização, o ensino brasileiro retomou o viés crítico inerente à boa educação. Pois educar, justamente, não é ensinar alguém a apertar os botões que fazem o mundo girar – é fazer com que o aluno reflita sobre esse funcionamento. A educação não deve servir para ensinar a subserviência. É preciso, isso sim, ensinar a pensar.
O projeto em debate na Assembleia Legislativa tem a aparência de uma boa intenção: evitar que o tablado se transforme em palanque. O site do “Escola sem partido”, que dissemina o projeto país afora, cita a famosa frase de Weber : é covardia o professor tentar impor seu ponto de vista ao aluno, já que ele é uma figura de autoridade, e o aluno pode se sentir compelido a concordar. Mais do que certo.
Mas há várias pistas de que o que está por trás do processo como um todo é outra coisa. Só para começar, há uma estranha afinidade ideológica entre os signatários do projeto. São basicamente conservadores, em grande parte evangélicos. E por que vem deles a proposta? É que o incômodo que move os deputados não é com qualquer doutrinação, mas com tipos muito específicos.
O Enem serviu para deixar isso mais claro. Deputados da direita se queixaram, por exemplo, de uma questão que citava um clássico de Simone de Beauvoir, “O segundo sexo”. Para os deputados, tratava-se nitidamente de doutrinação. Chegaram a dizer na internet que o Enem se convertera no Exame Nacional do Ensino Marxista.
Mas a questão não pedia para que o aluno concordasse com o pensamento de Beauvoir. Meramente pedia que o estudante ligasse aquela frase a um movimento social: o feminismo. Se soubesse que era disso que se tratava, levava o ponto, independentemente do que ache das feministas. Era como destacar uma frase de Martin Luther King e perguntar qual movimento ele liderou.
O principal propositor da ideia na Assembleia Legislativa, Gilson de Souza, disse que o projeto trata especificamente da “ideologia de gênero” porque “não se trata de algo comprovado em laboratório”. Ou seja: o assunto não é ciência; por consequência, pode ser visto como doutrinação. Simplesmente porque não há como estudá-lo como se estuda uma mitocôndria. Por esse critério, porém, é possível banir todas as ciências humanas do currículo. Novamente, o alvo está na filosofia, na sociologia, nas humanidades...
E, talvez, com variados graus de tolerância, seja esse o interesse por trás do projeto. Impedir a disseminação do pensamento crítico na escola. Banir os doutrinadores partidários que existem de fato não exige nenhuma lei a mais. Criar o fantasma de que a escola está pervertendo nossos jovens e de que é preciso uma revolução conservadora – isso sim exige o esforço feito atualmente pelos nossos deputados.
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