Cara ministra,
Li ontem seu texto em defesa do programa Mais Médicos. A senhora diz que o programa vale pelas vidas que salvará e que tentar impedir a vinda dos cubanos é "colocar a vida em segundo plano". Sou citado nominalmente em função da crítica que fiz na semana passada. Como não considero que a vida humana esteja em segundo plano (muito pelo contrário) e como acho que o debate é importante, vamos a ele.
É evidente que é preciso levar médicos para o interior do país. Hoje, a população mais pobre, inclusive nas grandes cidades, vive o drama da falta de atendimento. A senhora e eu temos plano de saúde e não precisamos enfrentar as filas. Mas conheço gente que há mais de um ano espera por atendimento de um especialista. Uma pessoa demorou seis meses para conseguir consulta no Hospital de Clínicas. Quando chegou a hora, havia greve. Depois disso, já se passou mais um ano e a situação dela continua a mesma: espera uma nova consulta que nunca chega.
A senhora mesma diz que muitas vezes o atendimento seria para algo básico: "a intervenção de alguém que pode medicar uma diarreia, uma virose, e salvar a vida de uma criança". Somente um insano seria contra isso. Tenta-se criar uma situação em que qualquer um que critique o programa está fora da realidade. Graças à estupidez dos médicos que vaiaram e xingaram os cubanos, qualquer um que questione as ações do governo agora também é imediatamente qualificado de xenófobo e racista. Interdita-se o debate, e isso é bom para o governo: as críticas parecem fadadas a soar absurdas. Coisas de quem quer atacar um governo generoso com a população mais carente. Sejamos honestos: nem sempre é assim, ministra.
O programa tem problemas. E o principal deles é fazer crer que esse é o único modo de agir. O discurso do governo faz parecer que um terremoto matou seletivamente milhares de médicos Brasil afora e que é preciso repô-los emergencialmente. Como se o problema não viesse de muito antes. Ou como se o seu partido não estivesse há dez anos no poder. Fica parecendo o caso daquele político que deixa acabar o insumo para fazer a compra sem licitação. Deixa acontecer a emergência para justificar um comportamento emergencial.
Ninguém em sã consciência pode ser contra o governo atender a população. Nem se trata de colocar a vida em segundo plano. O ponto é: até onde o discurso da emergência justificará quebras de princípios democráticos? O governo poderia ter feito convênios para validar diplomas de universidades reconhecidas; poderia ter criado mais cursos anos atrás; poderia ter votado, com sua ampla maioria no Congresso, a criação de uma carreira no funcionalismo que permitisse aos médicos começar no interior e progredir para a capital; poderia hoje mesmo fazer parcerias com ONGs ou com governos democráticos. Há dezenas de saídas.
Seu governo preferiu outro caminho. No mínimo, tem de saber conviver com as críticas. Dizer que quem está contra a ação do governo é contra a vida parece um argumento não só simplista, mas perigoso. De resto, já que vieram, que os médicos de fora ajudem a salvar vidas e a melhorar a vida da população. Longa vida a eles e a nós. E à democracia, que nos permite esse debate.
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