Mafalda e Susanita passeiam, numa tira do genial Quino, quando veem um mendigo. Mafalda diz que lhe parte o coração ver gente pobre; a amiga diz que sente o mesmo. Só discordam quanto ao que deveria ser feito. Mafalda, indignada, diz que seria preciso dar teto, trabalho proteção e bem-estar. A amiga diz que não precisaria tanto. “Bastaria escondê-los.”
Susanita era uma criança. Os adultos não costumam ser tão sinceros sobre suas opiniões e costumam disfarçar seu incômodo com camadas de verniz. Mas em Curitiba o espectro da pobreza “fora de lugar”, da pobreza aparente, anda incomodando. No shopping e nas ruas, comerciantes anunciam medidas – e pedem providências – para tentar reduzir o incômodo de seus clientes com a presença dessa gente diferenciada.
A Associação de Bares e Casas Noturnas foi quem teve o discurso mais direto. Diz que há muitos moradores de rua na cidade. A solução seria dar-lhes dignidade. Ótimo. Como se faria isso? Tirando-os das ruas, nem que seja à força. O caminho para a dignidade proposto pela associação é vedado pela Constituição e por tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
A Associação Comercial do Paraná veio em seguida. Disse que “o agravamento da questão dos moradores de rua” em Curitiba fez a situação chegar “ao limite”. A explicação do que isso significa vem a seguir. “Num período de retração econômica, os comerciantes, especialmente aqueles estabelecidos na Rua XV de Novembro, como já acontece com muitos, podem ter o seu negócio inviabilizado.” Os pobres fazem mal aos negócios.
No shopping Palladium, como não dependia do poder público a solução foi mais rápida e ao mesmo tempo mais sutil. Há duas semanas, uma briga causou pânico em lojistas e clientes. Lojas fecharam, pessoas se assustaram. Claro que era preciso fazer algo. Mas num mundo em que o Estado de Direito prevalecesse, o normal seria que pagasse pelo erro aquele que o cometeu. Não foi assim.
A decisão dos lojistas parece neutra: pediu-se à Justiça o direito de barrar menores de idade desacompanhados. O juiz disse que pode-se fazer isso e que o shopping pode decidir inclusive a quem pedir documentos para saber se é mesmo menor. De cara, libera-se com isso a entrada de todos os que vão de carro. Entre os que tentam passar pela porta da frente, há relatos de gente menor de idade que passou sem ser incomodada.
Uma lojista entrevistada pelo repórter Felippe Aníbal cometeu uma indiscrição ao comentar. “[A liminar] é injusta com algumas pessoas, mas elas tiveram que se sacrificar para que todos ficassem em segurança. Cliente nenhum quer vir a shopping pra ver ‘mano’.” Engana-se: os jovens iam ao shopping, entre outras coisas, para verem e serem vistos. Mas tem razão em dizer que a visão foi parte do que incomodou os demais frequentadores.
Curitiba, como quase toda cidade, tem uma bolha central de classe média e uma periferia onde há mais pobreza. Mundos que se misturam, às vezes, nos parques, no Centro e em shoppings. Há os que, ao vê-los, pensam como Mafalda: querem fazer algo por eles simplesmente em nome de sua dignidade. Há também as Susanitas, que não são poucas.
Evidente que a pobreza, a miséria, a exclusão são males que é preciso combater. Infrações (brigas, tumultos e o resto) também são um problema. Mas Kant nos ensinou que não se deve apenas fazer a coisa certa: é preciso defender a causa certa pelo motivo certo. Quem pensa que com propostas ainda mais excludentes está fazendo um bem para a cidade mal sabe que está apenas perpetuando a segregação.
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