Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Fazem sentido para mim estes versos da canção de Chico Buarque. Esta é a última coluna que escrevo para a Gazeta do Povo. É minha despedida aos leitores do jornal ao qual dediquei bem mais da metade de minha vida e exatamente no dia em que o jornal completa 99 anos de existência. Os tempos são outros e o ocaso é tão natural e tão infalível como o Sol que nasce e se põe.
Nunca escrevi em primeira pessoa. Optei sempre pela linguagem impessoal - mas hoje é diferente. É dia de dizer um adeus pessoal à Gazeta do Povo.
Iniciei aqui, neste jornal, minha jornada profissional em outubro de 1966, poucos meses antes da diplomação no curso de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Portanto, há 52 anos, num tempo em que as notícias nacionais e internacionais chegavam literalmente em código Morse e cheiro de chumbo derretido pelo velho Chripusko dominava todos os ambientes da sede da Praça Carlos Gomes, 4.
Este tempo equivale a mais da metade da vida do próprio jornal e dois terços da minha. Mal tinha completado 20 anos de idade quando subi pela primeira vez as escadas de mármore da velha casa. Cheguei tímido e inseguro. Três meses depois, porém, de estagiário, passei a contratado - graças a algo de que me orgulharei sempre: o reconhecimento pessoal do dr. Francisco Cunha Pereira Filho de que estava diante (talvez equivocadamente) de um jovem e promissor profissional.
CONFIRA: o arquivo das colunas de Celso Nascimento na Gazeta
Como se fosse seu “pupilo”, era a mim que quase todos os finais de tarde, quando o jovem dr. Francisco (então com 39 anos), após passar por momentos de oração na capela da igreja do Bom Jesus, chegava ao jornal em seu Studbaker 1953, e costumeiramente me chamava à sua sala para passar orientações para a edição do dia seguinte. Eu apenas um mero repórter, um “foca”.
De estagiário, passei a contratado - graças a algo de que me orgulharei sempre: o reconhecimento pessoal do dr. Francisco Cunha Pereira Filho
Foi uma relação de confiança e de respeito – quase paternal e filial – que se prolongou durante todo o tempo em que o dr. Francisco esteve à frente do jornal e, em seguida, também como o empreendedor que comprou a TV Paranaense, em 1969, e a transformou no embrião da grande rede de televisão, afiliada à Rede Globo, que domina a audiência no Paraná.
Aos 23 anos, sempre pelas mãos do dr. Francisco, fui elevado à condição de Chefe de Reportagem numa redação povoada por veteranos jornalistas. Foi também por sua indicação que, em 1968, antes mesmo da aquisição formal do Canal 12, que ele me designou para, acumulando as funções na Gazeta, ser também redator de um telejornal que iniciaria a parceria entre jornal e tevê.
Coincidências da vida, eu estava lá quando a Rede Globo, em 1.º de setembro de 1969, lançou o Jornal Nacional e coube a mim, naquele dia histórico, ser o primeiro repórter da primeira participação do Paraná na primeira edição do que viria a ser, em pouco tempo, o mais importante e influente telejornal da televisão brasileira.
Após um intervalo de breves anos no serviço público, quando tive a honra de assessorar gestores do porte de Paulo Carneiro Ribeiro (Agricultura) e Belmiro Valverde Jobim Castor (Planejamento) e de ter convivência próxima com os governadores Jayme Canet Jr. e Ney Braga, voltei outra vez ao grupo Gazeta/RPC – sempre a convite do dr. Francisco, para desta feita atuar como Chefe de Reportagem, por dez anos, da Rede Paranaense de Comunicação.
Os anos fora do grupo não foram desperdiçados. Serviram-me para conhecer o Paraná, seus problemas, seus desafios e compreender seus potenciais de desenvolvimento. Foi um aprendizado que ajuda até hoje para analisar os tantos governos que depois passaram diante do meu olhar crítico e absolutamente independente.
Eis que terminada a fase no serviço público – do qual fui afastado por uma demissão por “não ser confiável” para o governante de então (apenas colaborei para denunciar um secretário de estado que conduzia operações financeiras não republicanas), fui convocado – eis a repetição: pelo dr. Francisco – para ser editorialista da Gazeta do Povo, isto é, para escrever textos que representassem a opinião do jornal e do seu próprio dono.
Por breve tempo – cerca de quatro anos – fui também levado à Chefia de Redação do jornal e, desta função, e depois designado para, simultaneamente, voltar aos editoriais e assinar a coluna Política que levou meu nome ao longo dos últimos 12 conturbados anos.
Graças à liberdade que me deu a direção da Gazeta – já então já sob a chefia dos dois filhos de Francisco, Ana Amélia e Guilherme – pude dar vazão à minha veia crítica, sempre pautada pela independência, pelo apartidarismo, pela honestidade intelectual e pelo primado que me impus de adotar como linha mestra a defesa intransigente do que eu entendia ser de interesse público.
Enfrentei poderosos, ajudei a desvendar fatos escusos, a denunciar culpados, a evitar negociatas...
Esta linha valeu-me e ao jornal a conquista de impressionante público leitor. Valeu-me a conquista também de muitos amigos, mas, quem sabe, inversamente desproporcional ao número de inimigos. São incontáveis os processos judiciais que sofri, 95% reconhecidos pela Justiça como incabíveis, pois procurei nada mais fazer do que exercer o direito constitucional à crítica e à livre expressão do pensamento, calcado na verdade dos fatos, ainda que estes fossem contrários aos mandantes de ocasião que se consideraram ofendidos.
Orgulho-me disso. Nunca acreditei em jornalismo anódino e insosso, assim como não acreditei na hipocrisia de ouvir previamente do outro lado respostas óbvias para safar-me de responsabilidades, como ensina um dos grandes mestres do Jornalismo brasileiro, o professor Carlos Alberto Di Franco. Enfrentei poderosos, ajudei a desvendar fatos escusos, a denunciar culpados, a evitar negociatas...
Chegou a hora, porém, do descanso. Descanso para o jornal e para os leitores, já que suponho que minha presença entre os colunistas se tornava, a cada dia, visivelmente mais irrelevante e talvez inapropriada às modernas realidades digitais, às quais, como muitos outros veículos impressos, a G azeta do Povo precisou aderir.
Compreendo e aceito estes novos tempos. Aos 72 anos de idade, no entanto, o sangue de jornalista ainda corre quente nas minhas veias. Continuo dando-lhe vazão no site que preventivamente criei há seis meses, o Contraponto (www.contraponto.jor.br). É nele que agora posso ser encontrado por quem se interessar possa.
Por fim, apesar da metade arrancada de mim, como diz a poética de Chico Buarque, só tenho a agradecer a todos. Ao dr. Guilherme, à Ana Amélia, a todos os colegas de Redação, às muitas fontes às quais me mantive religiosamente fiel. E aos que me prestigiaram com sua paciente leitura.
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