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Se ainda resta alguma dúvida entre os senadores de que Renan Calheiros fere o decoro parlamentar ao permanecer na presidência do Senado na condição de acusado em vasto plantel de denúncias, para quem olha de fora uma certeza se impõe inquestionável: seus pares estão prestes a ultrapassar a linha da compostura, ao se dividirem entre os que lhe fazem apelos tíbios à retirada, os que lhe prestam reverência explícita e a maioria que se mantém em silêncio obsequioso.

Nesse ritmo, quebram eles mesmos o decoro. Enquanto correm as representações e os processos e pululam as evidências, no plenário vive-se um clima de ilha da fantasia. Excelência para lá, excelência para cá, questões de ordem aqui, comunicações inadiáveis acolá, afora uma ameaça parcial de obstrução da votações, a complacência é geral.

Ontem, dia seguinte ao Supremo Tribunal Federal abrir inquérito, a pedido do Ministério Público, para apurar os meios e modos pelos quais enriqueceu o senador, não se falou no assunto até que Renan Calheiros tomasse a iniciativa.

Deixou pela primeira vez a cadeira de presidente e ocupou a tribuna dos comuns para se defender. Não se defendeu. Atacou a revista Veja, alegando ilicitude na venda da TV a cabo pertencente ao Grupo Abril e atribuiu todos os seus infortúnios às ações do usineiro João Lyra e da presidente do PSol, a ex-senadora Heloísa Helena.

Repetiu ter apresentado toda a documentação exigida, mas omitiu o fato de que essa mesma documentação, por suspeita, suscitou novas denúncias. Ato contínuo, Calheiros abandonou o bom senso, voltou à cadeira de presidente e de lá usou do cargo para distribuir suspeições, mais especificamente ao senador José Agripino Maia (um dos poucos a se dirigir a ele de forma veemente e não como se lhe pedisse desculpas) e comandar serenamente a ordem do dia. Como se houvesse ordem no dia.

Enquanto os senadores forem condescendentes, Calheiros poderá em seu cinismo infindo continuar presidindo a Casa fazendo pose de ofendido, embora esteja sob suspeita de enriquecer de maneira inexplicável, usar dinheiro de origem desconhecida para pagar a pensão da filha, vender uma empresa da família a preços superfaturados na ordem de 500%, apresentar documentos falsos ao Senado e se utilizar de laranjas para comprar duas rádios e um jornal.

Enquanto não reagirem de alguma forma – a Câmara encontrou uma quando se recusou a ser presidida por ele na sessão de votação do Orçamento pelo Congresso –, continuarão de joelhos frente ao processo de encolhimento gradativo que Renan Calheiros impõe ao Senado. Conforme demonstrou ontem pela enésima vez, sob a benevolência de seus pares depois das parcas reclamações regulamentares.

Com quem andas

Ex-sócio de Renan Calheiros na aquisição de rádios e um jornal por intermédio de laranjas em Alagoas, hoje desafeto do senador, o usineiro, ex-deputado, ex-candidato a governador João Lyra foi personagem central de algumas – das inúmeras – histórias de violência, pistolagem e iniqüidade que o estado tem para contar. Apontado como mandante de assassinatos, sempre se livrou das acusações por conta de sua influência, relações e principalmente a imensa fortuna.

O mais notório desses episódios data de 1991, quando Lyra mandou matar o então amante da mulher, um sargento da polícia alagoana que morreu de emboscada não por causa da ira de um marido ciumento, mas por conta da ganância de um homem avarento.

A mulher, a quem Lyra humilhou mostrando aos filhos uma gravação que fizera de conversa dela com o sargento, assinou a sentença de morte do rapaz quando mostrou vontade de se separar para casar com o amante.

João Lyra suportaria uma traição, mas jamais a partilha de bens. Solange, a mulher, era tão ou talvez até mais rica que o marido. Logo após o assassinato, apareceram várias testemunhas incriminando João Lyra. Uma delas, a mulher que na época era casada com o sargento.

Na ocasião, o governador do estado, Geraldo Bulhões, e até o presidente da República, Fernando Collor de Mello, manifestaram-se a favor da prisão de João Lyra, que chegou a ser indiciado em inquérito da Polícia Civil em parte conduzido pelo delegado Ricardo Lessa (irmão do ex-governador Ronaldo Lessa), anos depois assassinado no centro de Maceió por mexer em casa de outros marimbondos.

Aberto o processo na Justiça, as testemunhas desmentiram o que haviam dito no inquérito policial e o caso foi devidamente arquivado. Na ocasião, um juiz de prenome Hamílton (em Alagoas é conveniente preservar as pessoas) explicou assim o fenômeno: "Minha filha, o Judiciário é um poder desarmado."

Cinco anos depois, Lyra foi apontado como mandante do assassinato de um fiscal da Secretaria de Fazenda de Alagoas, encarregado da cobrança de dívidas de vários usineiros, entre eles, o leitor já sabe quem: o sócio de Renan Calheiros na compra de um jornal e duas rádios em Alagoas.

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