Reza a lenda entre políticos, analistas e especialistas em geral que tratam de difundi-la ao ponto de contar hoje com aceitação mais ou menos geral , que não há outra maneira de se fazer política em governos de coalizão partidária sem entregar a máquina pública ao manejo muitas vezes transgressor dos sócios do condomínio.
Por essa ótica, chega-se à conclusão de que a corrupção é um mal necessário à sobrevivência da democracia, pelo menos tal como ela se apresenta no Brasil com partidos de ideologia difusa e profusão de legendas, cujo apoio majoritário é imprescindível para o êxito de qualquer governo.
É uma linha de raciocínio. Torta, porque fundada no falso pressuposto de que um sistema institucionalmente saudável possa permanecer assim durante muito tempo quando a regra do jogo é a da ilegalidade consentida. Assim como a tese não corresponde aos fatos, não é verdade também que a maioria da população não liga para questões dessa natureza se a economia vai bem e provoca uma sensação de bem-estar.
Está aí a última pesquisa do instituto Latinobarómetro para confirmar: no Brasil, a corrupção aparece como a principal preocupação quando a pergunta é "o que falta à democracia?". Ou seja, as pessoas podem até se sentir bem, mas conectam a epidemia de transgressões à saúde democrática.
José Álvaro Moisés, diretor do núcleo de pesquisas de políticas públicas da Universidade de São Paulo, diz que todos os estudos recentes apontam para o aumento da desconfiança em relação aos partidos e ao Congresso e mostram uma rejeição acachapante (mais de 80%) às práticas que os "especialistas" consideram inerentes à política.
"Elas afetam a qualidade da democracia. Se houver um acúmulo de episódios de corrupção, de escândalos sem punição, de banalização de infrações durante um longo tempo, o resultado será o questionamento da legitimidade dessas instituições", diz. A perda de referência legal e moral, segundo José Álvaro Moisés, gera desconfiança, descrédito, cinismo e conformismo.
É justamente aonde se chega quando se parte do princípio de que o pragmatismo deve prevalecer sobre tudo o mais, inclusive se sobrepondo à Constituição.
Voltando à questão inicial: precisa ser assim?
A posição militante do então presidente Lula de defesa sistemática de transgressores ajudou a disseminar a impressão de que sim, é o único jeito de governar. Mas José Álvaro, para quem a posição de Lula teve um "efeito deletério" exatamente por ser um líder de excepcional identificação popular, atesta que não, há outras maneiras de se pactuar regras da coalizão.
Tudo depende da virtude e do empenho do governante. A primeira condição é que o país seja informado sobre as premissas em que é feito o pacto com os partidos. "É possível partilhar partidariamente o poder, desde que haja compromisso com um programa de políticas públicas e com o cumprimento das normas de conduta, de resto muito claras nas leis."
Hoje, aponta o cientista, não se tem nem uma coisa nem outra. "Onde está dito ou escrito qual o programa de governo que os partidos devem seguir, qual a contribuição de cada um deles, quais os critérios de comportamento a serem seguidos? Não há isso e, se há, o país não foi comunicado a respeito."
Claro que um compromisso sob normas estritas e definidas reduziria muito a adesão dos partidos à coalizão. Dilma Rousseff dificilmente poderia contar os 15 partidos na base congressual. Mas, aqui, se impõe a dúvida: a amplitude da aliança garante vitórias no Parlamento?
"Não garante. Lula e Dilma tiveram dificuldades ou mesmo derrotas no Congresso", responde o cientista.
A única serventia é transmitir a impressão de unanimidade, intimidar a oposição, impedir que o Congresso exerça sua função fiscalizadora, alimentar o gigantismo do Executivo e, com isso, produzir o pior dos malefícios à democracia: interditar a produção de massa crítica na Casa de representação popular que deveria exercer, mas não exerce devido à submissão ao Executivo, a função de vocalizar o debate sobre as grandes questões nacionais, como o avanço da corrupção sobre as instituições.
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