E m sua mágoa e melancolia infindas, o ex-ministro Waldir Pires disse na quarta-feira passada, em entonação de defesa, o que o presidente Luiz Inácio da Silva repetiu na quinta em modulação de ataque: que a lógica eleitoral preside todas as críticas feitas ao governo, notadamente em função da letargia no trato da crise aérea.

CARREGANDO :)

Para Pires, sua demissão foi fruto de "pressão de forças políticas" tomadas de indisfarçável sanha para atingir o presidente da República porque não aceitam sua reeleição. "Essa eleição não termina nunca", afirmou, ao que Lula acrescentou: "No Brasil, a eleição não termina nunca. Ela é eterna".

Reclamava aí da "classe política", na opinião dele carente de civilidade, desprovida da percepção de que há momento de "fazer oposição" e momento de "construir o Estado".

Publicidade

Nenhuma novidade nessa maneira enviesada de ver as coisas, de olhar no espelho e enxergar no mundo a conduta do PT quando oposição em tempo integral, durante o qual muitas vezes prestou bons serviços à nação, embora em vários momentos tenha se posicionado na contramão da reconstrução do Estado.

Como depois de assumir o poder o partido associou-se a preceitos mais modernos, essa parte poderia ser relegada ao terreno dos perdoáveis equívocos de perspectiva, não fossem dois aspectos: a apropriação dos conceitos antes rejeitados para ações de auto-exaltação e a "denúncia" dos mesmos como malfeitos para uso na disputa com o adversário. Caso típico das privatizações.

O fato em relevo, agora, na retomada da prática de creditar toda e qualquer discordância à inconformidade com a eleição de Lula, é que ela se dá no momento exato em que começam a surgir na sociedade movimentações aqui e ali de cobranças organizadas por correções de rumo. A cidadania mostra sinais de vida e nisso influiu decisivamente a perda das 200 vidas no dia 17 de julho.

Há o Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros, lançado pela OAB, há passeatas programadas para este domingo em homenagem às vítimas do desastre, mas também em apelo ao fim da "passividade e da tolerância". Há um sentimento latente de necessidade de o Brasil começar a adotar padrões mais altos em todas as áreas, inclusive no comportamento da população, há as vaias e há a falta de traquejo de Lula para conviver com elas.

Por causa da crise, do desastre, dos escândalos, dos planos de publicidade vasta e execução escassa, por causa das atitudes fugidias, irônicas, grosseiras do presidente Lula e seus auxiliares diante de tudo, a mobilização evidentemente acaba assumindo tom oposicionista.

Publicidade

Mas não só, visto que quando se fala em "cansaço" com "tudo isso que está aí", fala-se também do Congresso, do Judiciário, da oposição partidária incapaz de estabelecer um contraponto positivo nas proposições; fala-se da ausência de interlocução entre Estado e sociedade, falam-se dos desmandos em série, ora agravados pela falta completa de cerimônia, mas velhos conhecidos do Brasil.

Governos levam sustos quando não estão cientes de que a eleição não lhes dá só a prerrogativa festiva do poder. Implica o cumprimento de tarefas.

E quando o senso comum julga-se subtraído, não enxerga nos governantes e nas instituições esforços no incremento do bem maior, a reação natural é a grita.

Confundi-la propositadamente com intenções golpistas decorrentes de inconformidade eleitoral seria apenas pueril, não revelasse também o vezo autoritário de dar ao exercício da crítica e da cobrança um caráter criminoso. Só em ditaduras há crime de opinião.

Na democracia, reza norma acaciana, a cidadania, a discordância, a prática da política, o embate, o contraditório, não se restringem ao ato de votar.

Publicidade

Fosse assim, teríamos de admitir como cabíveis manifestações apenas de dois em dois anos - ocasiões em que sempre se pode atribuí-las a intenções mesquinhas de poder. No período da entressafra eleitoral, por esse raciocínio o País fica obrigado a dizer amém a tudo a fim de permitir ao governo "construir o Estado" em paz. Ainda que a concepção dessa construção não esteja em conformidade com a opinião de uma boa parcela da população. Seja ela rica, pobre ou remediada.

Desse modo, pretende-se uma nação submissa, uma população de carimbadores reverentes de atos oficiais. Todas as cobranças apresentadas agora em gradação mais exacerbada vinham sendo feitas em feitio de alerta. Dizia-se que os escândalos não sanados cobrariam um preço adiante, falava-se sobre a necessidade de preservação de princípios, de rejeição vigorosa a práticas viciadas, mais recentemente, de dez meses para cá, apelava-se com rigor à sensibilidade governamental para a situação do tráfego aéreo.

Os ouvidos fizeram-se de mercador e as bocas de praguejadores confiantes e zombeteiros. A sociedade começa, então, a mostrar-se farta.

Não faz isso como desrespeito à democracia. Antes por respeito a seus direitos de reclamar da maneira de Lula governar. Não custava a ele, mais não seja em atenção à tão estimada lógica eleitoral, ao menos escutar no lugar de incriminar.