O descompromisso do governo com os princípios republicanos de fato, não os usados como figuras de retórica para efeito de disfarce, assume uma nitidez espantosa quando o presidente do Senado, Renan Calheiros, é quem dá à presidente da República lições sobre o funcionamento das instituições. Nesse ponto a gente vê que há mais que "algo errado", para usar a expressão do presidente da Câmara, Henrique Alves (correligionário de Calheiros), na concepção de República dos atuais locatários do poder. Está certíssimo o senador quando informa à ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, que o Executivo não dá ao Legislativo a sua devida dimensão e que, embora desafine, não é assim que a banda toca na ordem natural das coisas. Pura verdade.
Mas é fato também que o limite não foi ultrapassado à força. O Planalto não arrombou; simplesmente avançou por uma porta que o Congresso deixou aberta. Comportou-se como armazém de secos e molhados; o governo, em seu desapreço aos parceiros e na certeza de que o PT tem o monopólio da virtude e o respaldo eterno das pesquisas e opinião, sentiu-se à vontade para tratar o Parlamento como objeto de sua propriedade com salvo-conduto para qualquer tipo de uso.
Pior: assim continuaria sendo se a presidente Dilma Rousseff soubesse pilotar com habilidade a sua maioria e tivesse noção do que seja diálogo. É necessário, portanto, dar o devido peso à altivez temporã assegurada ao Senado pelo presidente da Casa. A atitude é consequência do estilo da chefe da nação: rude e crente de que é a mais sabida de todos. Em sua presumida sapiência, conseguiu transformar uma imensa base aliada em enorme e inesgotável fonte de problemas. Talvez para surpresa da presidente, não se resolvem com liberação de emendas ao orçamento nem com gestos de intimidação.
Vamos ver agora se o Senado fica firme em sua posição, se a Câmara acompanha ou se tudo não passou de um soluço. Muito em breve, nesta semana mesmo, já vai ser possível perceber. É quando se confirma, ou não, uma das hipóteses aventadas pelo governo para contornar as dificuldades decorrentes da tramitação das MPs. Assim como se fosse coisa mais natural do mundo, fala-se em transferir o conteúdo de uma medida com prazo de validade vencido para outra que versa sobre assunto diferente. A prática é conhecida como "contrabando" no Congresso. É ilegal, mas sempre foi aceita.
No ano passado, porém, quando o Supremo Tribunal Federal determinou que o Legislativo cumprisse a Constituição e passasse a examinar todas as medidas em comissão mista, o então presidente da Câmara, Marco Maia, anunciou que não poderiam mais ser incluídos itens estranhos ao objeto original da MP em plenário, depois da passagem pela comissão.
Caso aceite o estratagema do "contrabando", o Congresso estará dando aval a que o governo continue atuando por intermédio da mão do gato. Na base da gambiarra.
Tempo quente
No dia seguinte à confirmação de que a MP das tarifas de energia não seria examinada pelo Senado foi ouvida com clareza a expressão "partido de mercadores", no segundo gabinete mais poderoso do Palácio do Planalto. O assunto era o PMDB.
De prontidão
Se as condições objetivas para a reeleição de Dilma sofrerem os efeitos da deterioração nas relações entre ela e os partidos aliados, o ex-presidente Lula estará posicionado na linha de largada. Nesse caso, a presidente alegará razões pessoais para desistir. A justificativa será a família, não a política. Para não passar recibo.
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