"A reforma política não pode ser um debate restrito ao Congresso Nacional, que já demonstrou ser incapaz de aprovar medidas que prejudiquem os interesses estabelecidos de seus integrantes"
Uma piada alemã dos anos 30 do século passado pode ser útil para a compreensão da esfinge de Lula diante de sua sucessão:
O sujeito trabalhava numa fábrica de carrinhos de bebê quando sua mulher contou-lhe que engravidara. Ela pediu-lhe que furtasse uma peça por semana, de maneira que ao fim de nove meses teria trazido para casa um carrinho inteiro. O marido cumpriu a tarefa. Todavia, por mais que o casal manejasse as peças, nunca conseguiu montar o carrinho para o bebê. Obtinham sempre uma metralhadora.
Viviam o rearmamento alemão.
Por suas palavras, Nosso Guia é claro: "Não tem essa de o povo pedir."(...) "Disse e reafirmo que passarei a faixa presidencial ao meu sucessor no dia 1.º de janeiro de 2011".
Como Lula combateu o instituto da reeleição até o momento em que passou a ser seu eventual beneficiário, suas palavras nessa matéria exigem um certo grau de ceticismo.
Pelos seus atos, Nosso Guia está levando para o palácio as peças do carrinho de bebê da crise constitucional do terceiro mandato. Quando um presidente flerta com continuísmo, é tomado por alguns tiques.
O primeiro deles consiste em embaralhar as cartas das eventuais candidaturas. Lula deixa no ar não só os nomes de seu próprio partido, mas também a idéia da origem desse candidato. Pode ser do PT, ou não.
Esse congelamento não é suficiente para que se tema um golpe continuísta. É próprio dos poderosos reter ao máximo o debate de suas sucessões. (Nesse aspecto, Lula é ajudado pelos dois candidatos tucanos Jose Serra e Aécio Neves que se fingem de mortos.)
O Congresso do PT deliberou pela conveniência da convocação de uma Constituinte para reordenar o sistema político-eleitoral: "A reforma política não pode ser um debate restrito ao Congresso Nacional, que já demonstrou ser incapaz de aprovar medidas que prejudiquem os interesses estabelecidos de seus integrantes". Nessa frase cabe qualquer coisa, mas vale lembrar que a reforma deste ano naufragou porque o comissariado do PT quis impor um sistema eleitoral que cassava o direito dos cidadãos de escolher nominalmente todos os integrantes da Câmara dos Deputados. Mais: praticamente prorrogava os mandatos dos atuais maganos.
Convocada uma Constituinte, quais as chances de aprovação de uma emenda que dê a Nosso Guia o direito de buscar um terceiro mandato?
Nos anos 90, quando FFHH impôs sua maioria parlamentar para criar o mecanismo da reeleição, a América do Sul passava por um febre continuísta de triste memória: Carlos Menem na Argentina e Alberto Fujimori no Peru, ambos posteriormente encarcerados. Hoje, o continente padece de mal pior. É a instituição de um poder vitalício, submetido a referendos periódicos. É isso que Hugo Chávez quer para a Venezuela e percebe-se que a fórmula agrada aos seus colegas Evo Morales, da Bolívia, e Rafael Correa, do Equador. Na sua versão burlesca, é esse o espírito da candidatura de Madame Kirchner a presidência da Argentina.
Seis anos de governo mostraram que, para o bem e para o mal, Nosso Guia pouco tem a ver com Kirchner, Morales, Correa e Chávez. O Congresso do PT mostrou que o partido do presidente tem muito a ver com os caudilhos do século XXI. Felizmente, Fernando Henrique Cardoso já denunciou isso. Infelizmente, os tucanos da oposição-companheira fazem de conta que não o ouvem.
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