Às vezes me dá vontade de ser mais cronista do que articulista. Me explico: espera-se de um articulista que argumente lógica e concatenadamente sobre um assunto qualquer. Já o cronista pode divagar. Estou ficando cansado de argumentar, e com mais vontade de discorrer sem pretensões do que ter de demonstrar a lógica de meus argumentos.
Começo por fazer uma confissão. Na quinta-feira, dia 1.º de setembro, depois de um prazeroso almoço com bons amigos que ainda se dão ao trabalho de continuar a celebrar meus já batidos 80 anos, cheguei ao Instituto às cinco e meia da tarde. Recebi um antigo colaborador e amigo, que não via há muito tempo (por sinal hoje general do Exército) e, ainda, me dispus a mostrar-lhe a exposição sobre o Brasil de antes e depois do Plano Real que o Acervo do iFHC preparou para servir às novas gerações e, quem sabe, despertar o interesse de algum pesquisador. Às sete da noite, terminada a visita à exposição, recebi um recado de uma das minhas assessoras: não me esquecer do artigo para o primeiro domingo de setembro!
Mais grave ainda: devia sair de casa para o aeroporto na sexta feira às sete e meia da manhã para ir a Montevidéu, a convite de meu amigo o ex-presidente Julio Sanguinetti. Que fazer? Tinha em mente dois temas para este domingo. Algumas reflexões sobre a crise da economia dos países ricos e nossa experiência em lidar com a questão ou, algo mais quente, os limites da "faxina" da presidente Dilma e minhas declarações a respeito. Temas sérios. Confesso, faltou-me energia para discutir a fundo essas questões em duas horas que é o que me restava embora não me faltasse apetite para dar alguns palpites como cronista (sem querer ofender os brios dos verdadeiros cronistas).
Vamos lá. Primeiro, a crise financeira deles e nosso "legado", palavra pretensiosa e tão mistificadora como a expressão que andou na moda, herança maldita. No caso dos países ricos, é indiscutível, o que causou a crise foi mais o desregramento do sistema financeiro e a crença cega nas autocorreções do mercado do que a gastança governamental, a crise fiscal, embora esta exista também. Em nosso caso, foram as agruras nas contas externas e, sobretudo, as especulações contra a moeda nacional o "contágio" acrescidas, também, de fragilidades fiscais. Lá como aqui, com as mesmas razões ou sem razões aparentes, as agências avaliadoras de risco jogaram papel importante para desencadear dúvidas sobre a liquidez e a solvência.
Mas param por aí as similitudes. Nem tínhamos a possibilidade de picotar e transformar as hipotecas em "derivativos", pois o crédito imobiliário era pequeno, nem de empurrar para o Banco Central o desastre financeiro dos bancos e quejandos. Entre nós, também houve alguma "socialização das perdas", isto é o Tesouro (eu, você e todos os contribuintes) acabou pagando algo dos desatinos dos banqueiros e especuladores. Mas em pequena proporção: o grosso foi pago pelos próprios banqueiros audaciosos. Tiveram seus bens indisponíveis e perderam seus bancos. Isso foi o Proer. E, os bancos públicos estaduais, quando governadores tomavam dinheiro emprestado e não pagavam, foram privatizados ou fechados. Nesses casos também houve algum aumento da dívida pública federal, justificável para barrar de vez a possibilidade de desregramentos futuros. Isso foi o Proes.
Nos Estados Unidos e na Europa o que vemos? Inundação de dinheiro público via bancos centrais para salvar o sistema financeiro, sem qualquer penalização dos responsáveis e, ainda por cima, cortes drásticos nos orçamentos, sem aumento de impostos, fazendo com que os menos aquinhoados paguem os desvarios dos mais ricos! Pior: tudo isso sem que a economia retome seu dinamismo. Na Europa, um empurra-empurra para ver se algum país paga pelos empréstimos, que seus bancos fizeram aos países ora em penúria, ou se o Banco Central Europeu, quer dizer, todos, vão pagar. Sempre, além disso, há cortes drásticos no orçamento para pôr as contas fiscais em ordem. Resultado: poucas chances de crescimento nos próximos anos. Dá para entender?
Quando daqui gritávamos contra a desregulação (cheguei a apoiar a taxa Tobin, um imposto às transações financeiras internacionais, que quase todos os economistas condenam, para criar um fundo de solvência dos países endividados), vinham-nos com a mesma receita: aperto fiscal e nada mais, salvo um ou outro empréstimo do FMI quando a situação já era desesperadora. Quem com ferro fere, com ferro será ferido.
A confusão, agora, é "deles" e, como é "deles" e já não há mais eles sem nós, barbas de molho porque a recessão em marcha acabará por nos atingir. Enquanto isso, os sonhos de um G-20 ativo tratando de regular o mercado financeiro morre na praia. Não aprenderam nossa lição: além do apregoado aperto fiscal, seguimos as regras da Basiléia, isto é, nosso Banco Central pôs freio à especulação e à irresponsabilidade no sistema financeiro, desde os tempos do Proer e do Proes. E não descuidamos de ter um BNDES ativo nem dos programas de transferência de renda aos mais pobres e de aumentos reais do salário mínimo desde 1994 até hoje.
Em contrapartida deveríamos aprender com os países ricos que com corrupção pública não se deve brincar. Na Alemanha, o grande consolidador da União Europeia, Helmut Kohl, pagou alto preço por não querer dizer quem o ajudou em eleições e, recentemente, um importante ministro foi demitido por denúncia de plágio acadêmico. Assim, agora que se começou a falar em faxina creio que devemos apoiar as iniciativas neste sentido (desde uma CPI até os atos da presidente, estimulando-a a ir mais longe), sem deixar que o governo ou um partido, mesmo que de oposição, se apodere da bandeira da moralização. Isso seria logo visto como manobra política e perderia apoios na sociedade, que cansou de tanta impunidade.
Daí a pensar, como alguns pensam, que estamos querendo apoiar governos ou ficar bem na foto, é desconhecimento das reais motivações ou insensatez de quem não vê mais longe: as forças da corrupção estão mais enraizadas no poder do que parece. Sem tática, persistência e visão de futuro, será difícil barrá-las.
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