O editorial do O Estado de S. Paulo, na quinta-feira última, "Nunca antes neste país", ressalta com razão que a decisão do STF mostrou caberem nos bancos dos réus um governo, um partido e um sistema político-eleitoral. A cortina de fumaça publicitário-eleitoral do disciplinado PT faz seus dirigentes dizerem em uníssono: não temos nada com isso, o julgamento não respinga em nós nem no governo, o mau comportamento é caso isolado, talvez de um só "companheiro", o auto imolado Delúbio, etc. São justificativas típicas de partidos autoritários: "o partido", em sua essência é perfeito; os homens que o compõem são entidades à parte podem ser pecadores, mas o partido não erra nunca.
Por extensão, o governo desse partido, que se imaginava de pureza platônica, nada teria a ver com os erros de seus filiados, menos ainda a figura simbólica que o expressa, Lula. Este olha os companheiros e subordinados com a benevolência distante do "paisão" condescendente, sem qualquer responsabilidade por suas diabruras. Se erraram, pagarão o preço. A tarefa de julgar pertence aos tribunais, não aos membros do agrupamento.
Enquanto o Tribunal não dá seu veredicto, lavam-se as mãos e se tem por bons os que estão "supostamente" envolvidos em tramas. Pouco importa os veementes indícios que levaram os juízes do STF a receber as denúncias, tão pormenorizadamente descritas pela acusação e pela relatoria. Até o julgamento, "quadrilha", peculato, corrupção ativa ou passiva, são invencionices da mídia e da oposição. Se vierem a ser condenados, dirão: "que outra coisa esperar de um tribunal, senão acomodar-se com a mídia e com a elite?"
O truque ideológico é simples como o sofisma no qual se baseia o da separação entre um partido ideal, inatacável, e uma prática pervertida. É certo que a "culpa" será decidida pelo Tribunal, bem como as penalidades. É até provável que alguns dos acusados sejam inocentados, em parte ou totalmente. Mas a responsabilidade pelo que ocorreu (cujo juízo é político, não penal) recairá sobre o governo, sobre seu chefe e sobre todos os que, ao não reprovarem com energia os deslizes, assumem uma atitude leniente que convida à repetição das malfeitorias.
Jamais avancei juízos sobre a culpabilidade de cada acusado, à espera das provas (já evidentes em alguns casos) e da decisão da Justiça. Faço a devida distinção entre culpa penal e responsabilidade política. Mas não poupei a responsabilidade do presidente que nunca repudiou os fatos ocorridos, negando evidências, nem a dos dirigentes partidários que dizem: "não é conosco". Com quem é então? Com o Delúbio e com o Valério agindo sozinhos? A quem beneficiaram os apoios e os votos? Obviamente ao presidente, a seus aliados e à sustentação das políticas do governo.
Por conseqüência, presidente e governo, indiretamente, e as pessoas diretamente implicadas na trama respondem pelo que ocorreu, embora em instâncias diversas e com graus de culpabilidade e de responsabilização também diversos. Todos estão sim no banco dos réus. Alguns são réus da Justiça, outros perante a opinião pública e a História. E de nada vale o outro sofisma, malufiano: "fomos absolvidos pelo voto popular". Terão muitos políticos de má catadura nesta companhia. O voto dá poder, mas não absolve nem perante a Justiça nem perante a opinião pública; se o processo de responsabilização tivesse sustentação política, nem sequer poder daria. Mesmo dando-o, fica o estigma de um poder manchado por práticas corruptas.
A hipótese de que os maiores responsáveis políticos nada sabiam é de difícil sustentação. Houve reiteração no STF da presença do candidato à Presidência e de seu vice na sala contígua ao lugar em que era feita a compra do apoio do PL aos candidatos do PT. O então governador de Goiás reafirmou que dissera ao presidente saber de subornos. Ainda que os dirigentes nada soubessem na ocasião, depois do que hoje se sabe caberia a repulsa dessas práticas malsãs. O PT até hoje calou. E o presidente Lula outra coisa não faz do que confundir a opinião pública, sem nunca dizer quem o traiu, e sem condenar moralmente seus aloprados companheiros. O presidente deve à Nação (mesmo à parte dela que o "absolveu" pelo voto) um repúdio claro às transgressões.
Por fim, o sistema político eleitoral. A verdade é que o sistema de voto, proporcional e uni-nominal, fragmenta os partidos, quase os dissolve, obrigando o Executivo a uma série de acordos, popularmente chamados de barganhas. Esses acordos, não implicam necessariamente em suborno, em compra, em mensalões ou coisa que o valha. Mas implicam na cessão do controle de partes da máquina pública a interesses partidários, o que em si pode não ser um erro, se for para a implementação de políticas com as quais o governo ou os partidos aliados estejam de fato comprometidos.
Quando, como no caso atual, não se sabe qual é o programa do governo e os aliados nunca estiveram próximos das idéias dos governantes e, ainda por cima, se introduz a prática essa sim inédita e criada pelos operadores do PT de oferecer vantagens pecuniárias para obter apoios no Congresso, configura-se a tal "quadrilha" ou "bando". Não há pois como negar a relação entre o sistema político-eleitoral e os desatinos praticados.
Mudemos, pois o sistema. É por isso que, embora consciente dos problemas que o voto distrital acarreta (mas há formas para solucioná-los) venho me batendo por sua adoção. Ele quebra o atual sistema, que precisa ser quebrado, porque está desmoralizado. Se é certo que há algum tempo era perceptível o embaraço que nosso sistema político-eleitoral causa ao bom êxito da administração e às práticas políticas do país, isso se tornou patente no relacionamento entre o governo atual e o Congresso. O presidente Lula se declara favorável ao voto distrital misto. Por que então não assume sua responsabilidade política de o defender em vez de deixar o PT propugnar por "listas fechadas"?
Presidente, fale com franqueza, assuma posições claras em favor de uma vida política mais decente. Não serão sofismas nem milhões de votos que o absolverão perante a opinião pública se permanecer num silêncio conivente.
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