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Em algum lugar do livro O Poder do Mito, Joseph Campbell provoca o leitor ao dizer que "mitologia é a religião dos outros". Quando Campbell, estudioso de mitologia comparada, descrevia culturas ancestrais, como a egípcia, ele lembrava que aos olhos dos modernos Ísis, Osíris e Hórus eram mitos, mas aos olhos dos antigos eram deuses. Os três faziam parte da família real de uma religião à qual todos os egípcios dedicavam suas vidas. E dedicam de forma tão intensa a ponto de construírem monumentos piramidais com enormes blocos de pedra que até hoje fascinam a humanidade.

O atentado à revista francesa Charlie Hebdo e a inconsequente reação de parte de intelectuais, especialistas e internautas acaba de reformular a frase de Joseph Campbell. Mitologia, agora, é o pensamento dos outros. Pode ser descartado como mentira, desrespeitado, subjugado. Legitima o assassinato.

A transformação da opinião dos outros em mito permite se fazer pouco caso não só do pensamento alheio. Permite desprezar a vida e outros direitos de semelhantes. Na França, a mitificação do outro tende a permitir o fortalecimento da extrema direita, da islamofobia e, por consequência do radicalismo islâmico. Os primeiros provavelmente vão requerer mais controle dos indivíduos em troca de mais segurança; os segundos vão apoiar medidas contra muçulmanos; e os terceiros vão seguir praticando atos de terror. Muito além da violação da liberdade de expressão está o total desprezo por aqueles que pensam e se manifestam de forma diferente.

Relativismos

No Brasil, teve gente que achou possível fazer pouco caso do episódio e relativizar a morte de cartunistas e jornalistas. Argumentos melindrosos no estilo "se não tivessem mexido com o Islã, nada disso teria acontecido...", ou então, "não quero defender os ataques mas..." passaram a ser publicados em redes sociais e declarados em meios de comunicação.

Felizmente houve reação a esses discursos simplificadores. Os esclarecidos rechaçaram os "poréns" e "senões" que pretendiam transformar vítimas em culpados, neutralizando, ao menos em parte, o poder desagregador desses comentários. Não há hipótese de tolerância em favor de extremistas que acreditam ter o direito de executar pessoas, por discordarem de suas ideias ou... pior... por acreditar que a sátira é crime punível com a morte.

Os tolerantes com a intolerância violenta, talvez sem saber, admitem o desrespeito a valores profundamente enraizados na cultura democrática – a liberdade de expressão, o direito a um julgamento justo e, em especial, o direito à vida.

Extremismo global

A cultura da intolerância adquire contornos trágicos no embate teológico de grupos terroristas.Ainda que bem mais amena, entretanto, ela se desenvolve no Brasil. Os black blocs são um exemplo recente de culto à violência, alienação intelectual e autoritarismo. Há outros. Líderes partidários experientes exploram a política como fosse um jogo de futebol. Militantes caem como patos nesse jogo e protagonizam o discurso do ódio contra adversários na luta pelo poder.

As sementes do ódio estão lançadas. A globalização social avança no ritmo de fibras óticas. As pessoas se agrupam por afinidade de ideias, ampliando o alcance da adesão de crenças radicais a uma escala mundial. A título de exemplo, um brasileiro se juntou ao Estado Islâmico e virou notícia nesta semana. Na Europa, centenas de jovens vêm fazendo o mesmo. Há uma tendência nascente de radicalismo que pode tomar diversas novas formas de manifestação violenta.

É muito grave que no Brasil ainda haja grupos de cidadãos complacentes com o autoritarismo. É mais grave ainda que intelectuais pensem da mesma forma. O sistema de educação formal está rachado e precisa ser reformado. Apenas em partes está conseguindo dar conta de desenvolver espíritos questionadores, capazes de conter a tendência dos extremismos totalitários.

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