Há quem acredite que os panelaços do fim de semana e as manifestações previstas para domingo são “coisa de burguês” ou da “classe dominante”. Os rótulos podem até funcionar como retórica para convencer a militância mais aguerrida, mas são insuficientes e equivocados para compreender a realidade. Como atenuante aos que seguem o discurso da “coisa de burguês” é preciso dizer que as manifestações marcadas para o dia 15, assim como os protestos dos caminhoneiros e dos professores estaduais no mês passado, estão inseridas em uma dinâmica nova. Obedecem a uma lógica diferente, fundada na mudança das relações de poder entre cidadãos e Estado.

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O poder está se tornando algo mais fácil de conquistar, mais difícil de manter e mais disperso entre uma miríade de os atores da sociedade. Ao mesmo tempo, está menos absoluto e menos institucionalizado. Ocorre hoje o que o pesquisador Moisés Naím chama de “O fim do poder”, em obra de mesmo título. No livro, o pesquisador define poder como “a capacidade de impor ou impedir a s ações atuais ou futuras de outras pessoas ou grupos”.

Davi vs. Golias

Esse micropoder – “do pequeno domar (e por vezes dominar) o grande” – se manifesta na capacidade de vetar, contrapor e limitar o poderio dos grandes atores da política. Uma série de fenômenos conjugados levam o Golias estatal a ter a sua força resistida, imobilizada, e transformada em fraqueza.

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O cidadão conectado emerge na sociedade contemporânea como uma espécie de Davi hipermoderno, capaz de se mobilizar forças rapidamente via redes sociais a um custo mínimo (de tempo e dinheiro). Ágil, consegue agregar apoios de outros indivíduos e organizações, com a mesma desenvoltura que reivindica mudanças, mesmo que não saiba onde quer chegar. Ele tem ao alcance de um clique uma astronômica oferta de dados e opiniões. À sua disposição, há uma infinidade de ferramentas que o capacitam para o debate público.

Além disso, há um enorme contingente de cidadãos com quem ele pode se identificar – nas últimas décadas houve um crescimento expressivo da classe média, trazendo novos grupos para o consumo e para o mundo da cultura e das universidades.

Temor governante

Isso vem acontecendo no mundo todo. No Brasil, há fatores circunstanciais que conduzem a um ponto de tensão –esgotamento do presidencialismo de coalizão, desvio de bilhões de reais da maior estatal brasileira, envolvimento de políticos no escândalo da Petrobras, descolamento dos partidos em relação à sociedade, contínuas concessões de privilégios para altos funcionários de estado.

Ao mesmo tempo, os cidadãos observam o retrocesso econômico, o aumento de impostos, a pressão inflacionária, a redução de poder aquisitivo afetando especialmente das classes sociais menos favorecidas.

O fim do poder como os políticos o conhecem hoje é que os fazem temer as manifestações e as rotular maliciosamente. As análises tradicionais não são capazes de dar conta da complexidade das novas relações de poder. É isso que leva a declarações desastrosas, tão descoladas da realidade.

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Não dá para fazer exercício de futurologia sobre a magnitude das manifestações que estão por acontecer hoje, domingo ou nas próximas semanas. Uma coisa, entretanto, é certa. Os governantes passaram a temê-las.

Dura lição

Os manifestantes estão forçando os governantes a não esquecerem das consequências de seus atos. A partir de agora não dá mais para prometer uma coisa e fazer outra após cada eleição. Não dá para mentir para a população nem fingir que a crise econômica tem sua origem exclusiva no cenário internacional.

Tampouco dá para realizar reformas que atinjam o bolso do contribuinte sem a devida discussão com toda a sociedade. Nem mesmo se aceita mais que governantes permaneçam ilesos, por alegar desconhecimento de escândalos de corrupção. Afinal, há mecanismos de transparência e fiscalização que se implantados minimizam a ocorrência de desvios.

A mais dura lição do fim do poder, entretanto, é que essa nova realidade não é essencialmente melhor. Embora o debate público jamais tenha sido tão intenso, amplo e inclusivo como agora, a qualidade da discussão ainda é rudimentar, mal educada e frequentemente envenenada pelo radicalismo.

O micropoder está disponível para quem souber bem usá-lo. Os seus detentores podem ser cidadãos interessados acabar com a corrupção e provocar mudanças estruturais na sociedade. Mas podem ser também grupos corporativos que defendam seus privilégios de classe ou radicais que queiram implantar uma nova ditadura militar.

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