Ainda que a medicina não esteja entre meus domínios, vou prescrever algo para os males da memória: arquivos de jornais e revistas. Com eles podemos acompanhar, por exemplo, a trajetória das pessoas públicas – se foi heroica, gloriosa, se há algo desabonador, se eventuais erros cometidos foram corrigidos.
Ao folhear jornais e revistas de alguns anos atrás, é de se espantar como as peças dos vários quebra-cabeças da política brasileira vão se encaixando facilmente. As reviravoltas, como a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) desta quinta-feira (05), dão uma embaralhada nas peças. Mesmo assim, ao lermos sobre o que já se passou, compreendemos melhor o presente.
Defenestrar Eduardo Cunha da Câmara dos Deputados pode tirar um grande peso das costas de Michel Temer em um eventual governo, mas também pode causar prejuízos. A artilharia do deputado carioca é pesada, e ele conhece muito bem o vice-presidente. A proximidade entre os dois foi, inclusive, motivo de preocupação dentro do PT quando ele foi escolhido para compor a chapa de Dilma Rousseff.
“Uma das resistências do governo ao nome de Temer é a sua forte ligação com o deputado Eduardo Cunha, do Rio – conhecido no Congresso por sua voracidade por cargos e pelas artimanhas que usa para consegui-los”, diz a reportagem “A cara do PMDB”, publicada pela revista Piauí em junho de 2010.
O material foi feito pela repórter Consuelo Dieguez, que acompanhou Temer de perto por algumas semanas. Numa conversa, ele “admitiu que o colega é malfalado”, mas disse que não ia se “impressionar com as críticas”. Na verdade, Temer teceu vários elogios a Cunha. “O Eduardo Cunha tem lá o jeito dele. Mas ele é competente, trabalhador, dedicado e tem uma inteligência privilegiada. Só recentemente descobri que ele não é advogado, e conhece o direito tanto quanto eu”, declarou Temer à Piauí.
Em 2010, Temer era presidente da Câmara dos Deputados. Disse que mantinha a porta sempre aberta a todos. Consuelo então presenciou uma visita surpresa de Cunha e do deputado Henrique Alves a Temer. “O que eu posso fazer se o Eduardo Cunha aparece aqui em casa? Não deixá-lo entrar? Ele se impõe”, disse, depois, à repórter.
Sim, Cunha se impõe, e isso pode ser perigoso para um eventual governo de Temer. O político carioca, além de conhecer muito bem o regimento interno da Câmara, entende muito bem de negociatas e sabe agir bem nos bastidores. A reportagem da Piauí de 2010 destacava ainda um breve histórico dele: “evangélico, surgiu na política pelas mãos de Paulo César Farias, o tesoureiro de Fernando Collor. Depois, ligou-se ao ex-governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho”.
A repórter Consuelo Dieguez falava com conhecimento, e usando a memória. Em abril de 2000, foi dela uma reportagem publicada na revista Veja que mostrava uma série de irregularidades cometidas por integrantes do primeiro escalão de Garotinho. Cunha, então presidente da Companhia de Habitação, fez quatro licitações, nas quais a vencedora foi uma pequena empresa do interior do Paraná. O dono da empresa havia trilhado o mesmo caminho que Cunha: saiu do PRN de Collor para o PPB. Dias depois, todos os citados na reportagem deixaram seus cargos, numa grande crise política que atingiu em cheio a gestão Garotinho.
Em 2010, Consuelo Dieguez trouxe outra informação importante na Piauí: a de que Cunha “foi um dos principais artífices para a eleição de Temer a presidente da Câmara”.
Cunha foi a mão forte que conduziu o impeachment de Dilma na Câmara, abrindo a possibilidade iminente de Temer assumir a Presidência. Com a decisão do STF, Cunha se sentirá abandonado, traído por Temer? Isso seria um perigo.
Sábio
O colega José Carlos Fernandes escreveu em uma coluna, anos atrás: “Não me tomem por doido varrido – mas um dos maiores prazeres da vida é folhear publicações antigas”. Todos que o acompanham sabem que ele não tem nada de doido varrido– e sim muito de sábio.
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