Há algo de selvagem e tribal incrustado na sociedade brasileira. O que é, senão selvagem e tribal, o espancamento da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, no Guarujá, litoral de São Paulo? Fabiane voltava da igreja com uma Bíblia e foto das duas filhas. Foi atacada porque a turba a identificou como uma bruxa sequestradora de crianças, praticante de rituais de magia negra. Segundo a polícia, a dita bruxa só habitava os boatos das redes sociais e nunca existiu no mundo real.
O julgamento da multidão, porém, já estava tomado, como mostra o macabro vídeo do ocorrido. Fabiane foi espancada e arrastada depois de oferecer uma banana a uma criança. À luz do dia os agressores se revezavam no ataque. Uma pequena multidão assistia, entre risos e grunhidos. Ao contrário do que dizia o evangelista Lucas da Bíblia de Fabiane, os demônios não saíram dos homens e entraram nos porcos, despencando desfiladeiro abaixo. Naquele momento, estavam todos ali misturados celebrando o mal praticado em nome de um suposto bem purificador. "Eu também tenho filhos, doutor", justificou-se depois um dos suspeitos presos pela morte de Fabiane.
As crianças do bairro também estavam lá acompanhando o massacre. Algumas delas seguravam também seus instrumentos de tortura: pedaços de paus e pedras.
Matemática
O caso de Fabiane é sui generis pela brutalidade e covardia, mas não é, estatisticamente, um ponto fora da curva. Guarujá registrava, segundo o Mapa da Violência, 18,2 homicídios a cada 100 mil habitantes em 2011. O índice é inferior ao brasileiro, de 25,2 assassinatos por 100 mil habitantes. O mesmo Mapa da Violência mostra que o município reduziu sua taxas de assassinatos. Em 2000, o índice na cidade era de 59,3.
A melhora do indicador, no entanto, precisa ser relativizada.
A matemática explica, mas necessita de legenda. Cinquenta homicídios por 100 mil habitantes foi a média da Europa entre os séculos V e XV. 18,2 é um índice semelhante ao atual da Nigéria, país que sofre com conflitos étnicos e religiosos e que, nos últimos dias, foi palco do sequestro de 276 crianças pelo grupo islamita radical Boko Haram.
Livre comércio e Estado
Em "Os Anjos Bons da Nossa Natureza: Por Que a Violência Diminuiu", o psicólogo Steven Pinker revela que a violência veio sendo gradativamente reduzida nas sociedades humanas. Pinker crava que vivemos dias bem mais pacíficos do que os enfrentados por nossos antepassados e isso ocorreu pela combinação de dois fatores principais: o desenvolvimento do comércio e a construção dos Estados. O raciocínio é simples. Para as sociedades coletoras, caçadoras e dependentes de agricultura de subsistência, a relação mais esperada com grupos distintos era a de aniquilação e dominação. Análises arqueológicas e históricas mostram que em tribos bárbaras europeias da Alta Idade Média que competiam umas com outras o índice de assassinatos chegava à casa dos 500 por 100 mil habitantes.
Com sociedades economicamente mais desenvolvidas, por outro lado, o raciocínio era outro. A maior variedade de produtos agrícolas, de especiarias e vestimentas encorajava a troca e as relações comerciais. Valia mais a pena entender a língua do vizinho e negociar com ele do que aniquilá-lo. Paralelamente, a criação do Estado, com a definição de regras básicas de convívio e o nascimento de sistemas judiciários, foi deixando para trás sociedades baseadas na lei do mais forte, na vingança entre clãs e famílias e nos justiçamentos públicos. Hoje, a média de homicídios na Europa é de menos de um por 100 mil habitantes.
O Brasil de Fabiane possui Estado, em teoria. Ele consome 33,5% das riquezas praticadas no Brasil, estabelece uma infinidade de leis e normas para que o cidadão abra sua empresa, faça negócios e simplesmente exista. O Estado de Fabiane possui bancos, não deixa mais ninguém entregar correspondências e tenta construir trens-bala e submarinos nucleares que não saem do papel. O Estado brasileiro está ocupado fazendo tudo isso, mas não consegue manter um aparelho policial e um ordenamento jurídico e institucional que afaste o Brasil da Idade Média e de países africanos em guerra. O Guarujá nos mostra que ainda agimos como bárbaros pré-comércio e pré-Estado.
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