Desvendando o passado
Veja como funcionará a Comissão da Verdade, caso o projeto seja aprovado pelo Congresso
Será formado por sete integrantes designados pela presidente da República.
Terá prazo de dois anos para apresentar um relatório final.
Depoimentos poderão ser mantidos em sigilo para que a comissão "alcance seus objetivos ou para resguardar a intimidade, vida privada, honra ou imagem de pessoas".
Poderá requisitar informações, dados e documentos de qualquer órgão público, ainda que classificados como sigilosos nesse caso, eles não poderão ser divulgados.
Não terá poder de julgar a responsabilidade de agentes estatais em mortes, torturas e desaparecimentos durante a ditadura.
Entre os objetivos da comissão, estão:
promover o esclarecimento dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria;
identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;
promover a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.
Desafio
Resgate ajuda novas gerações
O passo considerado mais importante pelos comitês estaduais que defendem a Comissão da Verdade é mostrar à população a importância de elucidar os fatos que marcaram a ditadura militar para que, no futuro, eles não se repitam. Por isso, os grupos locais defendem que o tema seja discutido exaustivamente em audiências públicas por todo o país antes de ir à votação no Congresso.
"É preciso aprimorar o texto do projeto, abrir a discussão para a sociedade. Isso não é uma coisa dos parlamentares, não é uma negociação política. Não se trata de uma questão só de governo, mas do nosso futuro democrático. E disso depende a participação da sociedade civil", afirma Narciso Pires.
A posição também é defendida pelo procurador de Justiça do Ministério Público Estadual Cândido Furtado Maia Neto, que integra o comitê paranaense. Para ele, as novas gerações precisam tomar conhecimento do que ocorreu entre 1964-1985, a fim de que fatos como esse não voltem a ocorrer. "Precisamos, em um estado democrático de direito, trabalhar cada vez mais pela promoção e respeito aos direitos humanos. E isso quer dizer respeito à dignidade da pessoa humana para o presente e para o futuro. Mas, para avançar nesse sentido, precisamos também saber o que ocorreu no passado", argumenta.
Para que isso não fique apenas no discurso, Pires defende mudanças no texto do projeto do Executivo. Entre eles, o aumento no número de integrantes da comissão, que hoje está estipulado em sete, e o impedimento de que militares que cometeram crimes como tortura participem do grupo. "A comissão não será da verdade se começarmos a trabalhar a ideia de que torturadores são criminosos políticos. Eles são bandidos. E aqui não me refiro às Forças Armadas de maneira geral", diz.
Por fim, Pires afirma ainda que é importante excluir do projeto a previsão de que depoimentos e documentos possam ser mantidos em sigilo de acordo com a decisão da comissão. (ELG)
Serviço:
Comitê Paranaense pela Verdade, pela Memória e pela Justiça. Reuniões todas as quartas-feiras, a partir das 19h30. Rua Voluntários da Pátria, 475 (Edifício Asa), Sala 608, Centro, Curitiba. Telefone: (41) 3079-1759
"Há risco de reacender o ódio"
"As Forças Armadas não vão permitir represália e retaliação." A afirmação é de um ex-militar que, por divergir das medidas tomadas pelo governo golpista durante a ditadura, sofreu uma espécie de boicote e preferiu deixar a corporação. Geraldo Cavagnari Filho é enfático ao afirmar que a Comissão da Verdade, além de não poder voltar atrás em tudo o que foi feito entre 1964 e 1985, corre o riso de reacender o ódio entre as Forças Armadas e os opositores ao regime. Para ele, o país já está pacificado e, com o tempo, a história de torturas e crimes contra a humanidade será reescrita pelos historiadores.
Aguardando votação no Congresso Nacional desde maio do ano passado, o projeto do governo federal que cria a Comissão da Verdade que vai apurar a história da repressão durante a ditadura militar continua longe de ser unanimidade. Militantes contra o regime militar e setores das Forças Armadas divergem sobre vários pontos da proposta, entre eles quem deve fazer parte da comissão e se o grupo terá poder de apontar culpados e pedir providências à Justiça em relação a casos, por exemplo, de tortura situações que foram anistiadas no país. Na tentativa de pressionar os parlamentares a alterar o texto original do projeto, comitês locais estão sendo criados em todo o Brasil, inclusive no Paraná. O objetivo deles é claro: garantir que os crimes cometidos entre 1964-1985 não sejam encobertos mais uma vez.Nos bastidores, o Executivo vem se articulando para aprovar a proposta no Congresso o quanto antes, evitando que o texto sofra alterações e provoque ainda mais desgaste político. A presidente Dilma Rousseff, que foi presa e torturada durante a ditadura militar, tem interesse especial na aprovação do projeto, uma vez que foi ela a idealizadora da matéria quando chefiava a Casa Civil no governo Lula em seu discurso de posse, ela disse não ter ressentimentos e rancores da época.
Para garantir que antes da votação no Congresso a matéria passe por um amplo debate, 18 comitês estaduais estão se articulando para discutir meios de mostrar à sociedade a importância de trazer à tona os acontecimentos do regime militar. A intenção é repetir a estratégia utilizada no período final da ditadura, quando a pressão dos opositores forçou o governo a promulgar a Lei da Anistia, em 1979.
Resgate da história
Coordenador do Comitê Paranaense pela Verdade, pela Memória e pela Justiça, Narciso Pires foi torturado, sequestrado e preso por seis vezes durante a ditadura militar. A acusação contra ele, que foi obrigado a viver na clandestinidade a partir de 1970, era de tentar reorganizar o Partido Comunista Brasileiro no Paraná. "Desvendar esse processo histórico é uma responsabilidade do conjunto da sociedade. Foi assim em todo o mundo, inclusive na América Latina, e tem de ser assim no Brasil", defende.
Um dos pontos do texto mais criticado por Pires diz respeito à impossibilidade de punição a torturadores que forem desvendados a partir dos depoimentos que serão colhidos pela comissão a medida foi uma forma encontrada pelo governo para esfriar o ânimo dos militares, que veem o mecanismo como retaliação. O tema divide inclusive o meio jurídico uma vez que, apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter decidido em 2008 que a Lei da Anistia impede julgamentos de atos praticados durante o regime militar, convenções internacionais ratificadas pelo Brasil determinam a punição de pessoas que cometeram crimes de lesa-humanidade, considerados imprescritíveis.
"Tortura não é um crime político, mas um crime comum e contra a humanidade. Eles cometeram crimes inclusive pela ótica da ditadura, que não tinha nenhuma legislação que garantia a tortura como método investigativo", afirma Pires. "Por que no Brasil tem de ser diferente, se em todo o mundo os torturadores cumprem pena e estão na cadeia?"
Pires afirma ainda que o STF mentiu e errou de forma grosseira ao referendar a Lei da Anistia sob o argumento de que tudo foi feito a partir de "negociação com a sociedade". "O argumento de que a Lei da Anistia foi negociada com a oposição é mentiroso. Todos nós militamos na época e jamais fomos consultados", critica. "Além disso, enquanto todos os militares foram de fato anistiados, apenas 17 dos 56 presos políticos à época foram beneficiados pela lei. A maioria deixou a prisão por cumprimento de pena." Para ele, isso mostra que é inaceitável a postura dos militares de exigir que a Comissão da Verdade também investigue eventuais crimes cometidos por opositores à ditadura.
Sem revanchismo
Um dos principais argumentos de representantes das Forças Armadas para desqualificar a Comissão da Verdade é de que o sentimento de revanche move os defensores da criação do grupo.
Pires rebate esse posicionamento e afirma que os perseguidos pela ditadura querem que os militares sejam processados judicialmente, dentro do processo legal e democrático. "Revanchismo seria se nós quiséssemos que os torturadores passassem pelas mesmas torturas que nós sofremos. Tudo que queremos é zelar pelos direitos humanos", argumenta.
De acordo com o grupo Tortura Nunca Mais, fundado em 1985 por ex-presos políticos do regime militar, 136 militantes continuam desaparecidos e outros 298 foram mortos pela ditadura.
Procurados pela reportagem, representantes e entidades ligadas às Forças Armadas não quiseram comentar o assunto.
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