Pires, uma das vítimas do regime militar, diz que em todos os países os torturadores foram punidos, menos no Brasil| Foto: Marco André Lima/ Gazeta do Povo

Desvendando o passado

Veja como funcionará a Comissão da Verdade, caso o projeto seja aprovado pelo Congresso

• Será formado por sete integrantes designados pela presidente da República.

• Terá prazo de dois anos para apresentar um relatório final.

• Depoimentos poderão ser mantidos em sigilo para que a comissão "alcance seus objetivos ou para resguardar a intimidade, vida privada, honra ou imagem de pessoas".

• Poderá requisitar informações, dados e documentos de qualquer órgão público, ainda que classificados como sigilosos – nesse caso, eles não poderão ser divulgados.

• Não terá poder de julgar a responsabilidade de agentes estatais em mortes, torturas e desaparecimentos durante a ditadura.

• Entre os objetivos da comissão, estão:

– promover o esclarecimento dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria;

– identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

– promover a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.

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Desafio

Resgate ajuda novas gerações

O passo considerado mais importante pelos comitês estaduais que defendem a Comissão da Verdade é mostrar à população a importância de elucidar os fatos que marcaram a ditadura militar para que, no futuro, eles não se repitam. Por isso, os grupos locais defendem que o tema seja discutido exaustivamente em audiências públicas por todo o país antes de ir à votação no Congresso.

"É preciso aprimorar o texto do projeto, abrir a discussão para a sociedade. Isso não é uma coisa dos parlamentares, não é uma negociação política. Não se trata de uma questão só de governo, mas do nosso futuro democrático. E disso depende a participação da sociedade civil", afirma Narciso Pires.

A posição também é defendida pelo procurador de Justiça do Ministério Público Estadual Cândido Furtado Maia Neto, que integra o comitê paranaense. Para ele, as novas gerações precisam tomar conhecimento do que ocorreu entre 1964-1985, a fim de que fatos como esse não voltem a ocorrer. "Precisamos, em um estado democrático de direito, trabalhar cada vez mais pela promoção e respeito aos direitos humanos. E isso quer dizer respeito à dignidade da pessoa humana para o presente e para o futuro. Mas, para avançar nesse sentido, precisamos também saber o que ocorreu no passado", argumenta.

Para que isso não fique apenas no discurso, Pires defende mudanças no texto do projeto do Executivo. Entre eles, o aumento no número de integrantes da comissão, que hoje está estipulado em sete, e o impedimento de que militares que cometeram crimes como tortura participem do grupo. "A comissão não será da verdade se começarmos a trabalhar a ideia de que torturadores são criminosos políticos. Eles são bandidos. E aqui não me refiro às Forças Armadas de maneira geral", diz.

Por fim, Pires afirma ainda que é importante excluir do projeto a previsão de que depoimentos e documentos possam ser mantidos em sigilo de acordo com a decisão da comissão. (ELG)

Serviço:

Comitê Paranaense pela Verdade, pela Memória e pela Justiça. Reuniões todas as quartas-feiras, a partir das 19h30. Rua Voluntários da Pátria, 475 (Edifício Asa), Sala 608, Centro, Curitiba. Telefone: (41) 3079-1759

"Há risco de reacender o ódio"

"As Forças Armadas não vão permitir represália e retaliação." A afirmação é de um ex-militar que, por divergir das medidas tomadas pelo governo golpista durante a ditadura, sofreu uma espécie de boicote e preferiu deixar a corporação. Geraldo Cavagnari Filho é enfático ao afirmar que a Comissão da Verdade, além de não poder voltar atrás em tudo o que foi feito entre 1964 e 1985, corre o riso de reacender o ódio entre as Forças Armadas e os opositores ao regime. Para ele, o país já está pacificado e, com o tempo, a história de torturas e crimes contra a humanidade será reescrita pelos historiadores.

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Aguardando votação no Congresso Nacional desde maio do ano passado, o projeto do governo federal que cria a Comissão da Verdade – que vai apurar a história da repressão durante a ditadura militar – continua longe de ser unanimidade. Militantes contra o regime militar e setores das Forças Armadas divergem sobre vários pontos da proposta, entre eles quem deve fazer parte da comissão e se o grupo terá poder de apontar culpados e pedir providências à Justiça em relação a casos, por exemplo, de tortura – situações que foram anistiadas no país. Na tentativa de pressionar os parlamentares a alterar o texto original do projeto, comitês locais estão sendo criados em todo o Brasil, inclusive no Paraná. O objetivo deles é claro: garantir que os crimes cometidos entre 1964-1985 não sejam encobertos mais uma vez.Nos bastidores, o Executivo vem se articulando para aprovar a proposta no Congresso o quanto antes, evitando que o texto sofra alterações e provoque ainda mais desgaste político. A presidente Dilma Rousseff, que foi presa e torturada durante a ditadura militar, tem interesse especial na aprovação do projeto, uma vez que foi ela a idealizadora da matéria quando chefiava a Casa Civil no governo Lula – em seu discurso de posse, ela disse não ter ressentimentos e rancores da época.

Para garantir que antes da votação no Congresso a matéria passe por um amplo debate, 18 comitês estaduais estão se articulando para discutir meios de mostrar à sociedade a importância de trazer à tona os acontecimentos do regime militar. A intenção é repetir a estratégia utilizada no período final da ditadura, quando a pressão dos opositores forçou o governo a promulgar a Lei da Anistia, em 1979.

Resgate da história

Coordenador do Comitê Paranaense pela Verdade, pela Memória e pela Justiça, Narciso Pires foi torturado, sequestrado e preso por seis vezes durante a ditadura militar. A acusação contra ele, que foi obrigado a viver na clandestinidade a partir de 1970, era de tentar reorganizar o Partido Comunista Brasi­­leiro no Paraná. "Desvendar esse processo histórico é uma responsabilidade do conjunto da sociedade. Foi assim em todo o mundo, inclusive na América Latina, e tem de ser assim no Brasil", defende.

Um dos pontos do texto mais criticado por Pires diz respeito à impossibilidade de punição a torturadores que forem desvendados a partir dos depoimentos que serão colhidos pela comissão – a medida foi uma forma encontrada pelo governo para esfriar o ânimo dos militares, que veem o mecanismo como retaliação. O tema divide inclusive o meio jurídico uma vez que, apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter decidido em 2008 que a Lei da Anistia impede julgamentos de atos praticados durante o regime militar, convenções internacionais ratificadas pelo Brasil determinam a punição de pessoas que cometeram crimes de lesa-humanidade, considerados imprescritíveis.

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"Tortura não é um crime político, mas um crime comum e contra a humanidade. Eles co­­meteram crimes inclusive pela ótica da ditadura, que não tinha nenhuma legislação que garantia a tortura como método investigativo", afirma Pires. "Por que no Brasil tem de ser diferente, se em todo o mundo os torturadores cumprem pena e estão na cadeia?"

Pires afirma ainda que o STF mentiu e errou de forma grosseira ao referendar a Lei da Anistia sob o argumento de que tudo foi feito a partir de "negociação com a sociedade". "O argumento de que a Lei da Anistia foi negociada com a oposição é mentiroso. Todos nós militamos na época e jamais fomos consultados", critica. "Além disso, enquanto todos os militares foram de fato anistiados, apenas 17 dos 56 presos políticos à época foram beneficiados pela lei. A maioria deixou a prisão por cumprimento de pena." Para ele, isso mostra que é inaceitável a postura dos militares de exigir que a Comissão da Verdade também investigue eventuais crimes cometidos por opositores à ditadura.

Sem revanchismo

Um dos principais argumentos de representantes das Forças Ar­­madas para desqualificar a Co­­missão da Verdade é de que o sentimento de revanche move os defensores da criação do grupo.

Pires rebate esse posicionamento e afirma que os perseguidos pela ditadura querem que os militares sejam processados judicialmente, dentro do processo legal e democrático. "Revan­­chismo seria se nós quiséssemos que os torturadores passassem pelas mesmas torturas que nós sofremos. Tudo que queremos é zelar pelos direitos humanos", argumenta.

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De acordo com o grupo Tortura Nunca Mais, fundado em 1985 por ex-presos políticos do regime militar, 136 militantes continuam desaparecidos e outros 298 foram mortos pela ditadura.

Procurados pela reportagem, representantes e entidades ligadas às Forças Armadas não quiseram comentar o assunto.