Malvista no Congresso e tida por estudiosos como responsável por uma grave distorção no princípio constitucional da harmonia dos poderes, a medida provisória vem sendo usada sistematicamente desde a Constituição de 1988 como instrumento capaz de impor a agenda do Executivo ao Congresso para agilizar a aprovação de matérias de interesse do governo. Se na sua origem pretendia garantir ao presidente da República um instrumento capaz de impedir o engessamento da administração e evitar crises de governabilidade vistas no período anterior ao golpe militar de 64, há muito a MP deixou de ser uma ferramenta auxiliar para se tornar o instrumento por excelência do Executivo.
Sem cerimônia, o governo recorre aos subjetivos critérios de urgência e relevância para justificar o envio da matéria ao Congresso por MP, em vez de um projeto de lei, por exemplo. Se por um lado dá celeridade à discussão das matérias e faz o Congresso trabalhar, por outro, a MP emperra a pauta e prejudica o funcionamento do Parlamento, que acaba ficando a reboque do Executivo. Como as matérias tratadas em MPs entram em vigor imediatamente, o Legislativo acaba ficando com o custo político de derrubá-las.
- Os requisitos de urgência e relevância raramente são observados, banalizou-se o instrumento da medida provisória - afirma o cientista político Paulo Kramer, professor da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo um levantamento da consultoria Kramer e Ornelas, sete em cada dez leis ordinárias sancionadas em 2006 tiveram origem no Executivo, majoritariamente por MPs. Das 178 leis, 124 foram de iniciativa do Executivo, 42 do Legislativo, 9 do Judiciário, duas do Ministério Público da União (MPU) e uma do Tribunal de Contas da União (TCU). Somadas as leis complementares e propostas de emenda constitucional (PECs), o total legislado sobe para 186, elevando um pouco a participação do Legislativo, para 50 matérias. Mas ainda assim o Executivo fica responsável por nada menos do que cerca de 67% das propostas. O curioso é que quase metade das proposições de iniciativa parlamentar no período consistiu em homenagens, como a criação do Dia Nacional de Conscientização sobre a Esclerose Múltipla. Em 2006, a Câmara só deliberou em 36% das sessões convocadas porque a pauta estava trancada por MPs ou devido a reflexos da crise política.
Nesta segunda, o presidente da Casa, Arlindo Chinaglia (PT-SP), reclamou, dizendo que é preciso discutir mudanças na tramitação das MPs:
- Está insuportável (o número de MPs) - afirmou.
Crítico das MPs, Paulo Kramer admite que, num quadro partidário fragmentado como o brasileiro, a governabilidade estaria comprometida se o presidente não pudesse lançar mão desse artifício, inspirado em instrumentos autoritários como os decretos-leis do regime militar. Como o Congresso não cumpre seu papel constitucional, o governo toma a iniciativa de legislar e edita uma enxurrada de MPs, o que acaba travando a pauta e paralisando o Legislativo. Kramer observa, no entanto, que o Congresso brasileiro não é um mero carimbador das matérias enviadas pelo governo e que o abuso de MPs não é sinal de força do governo:
- O Congresso brasileiro não é pró-ativo nem carimbador, é reativo. E com um Congresso reativo, as MPs são indispensáveis, mas o Executivo que as edita em excesso demonstra fraqueza - e não força - afirma.
Na avaliação de Kramer, para abrir mão das MPs, o governo precisaria de uma maioria segura no Congresso, o que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscou com a formação de um governo de coalizão. O professor afirma, porém, que é uma tarefa inglória diante de um quadro partidário pulverizado, que torna as votações imprevisíveis e leva o governo a negociar no varejo por meio de barganhas, como a liberação de emendas orçamentárias e preenchimento de cargos no Executivo. Kramer acredita que o fortalecimento dos partidos e a fidelidade partidária são dois bons caminhos para corrigir essa distorção.
Ainda de acordo com o levantamento da consultoria do professor, nos primeiros três anos de governo, Lula editou 4,76 medidas provisórias por mês. No ano passado, o número subiu para 4,91, média bem próxima à de Fernando Henrique Cardoso. Em seu último ano de governo, a caneta de FH elevou a média para 6,8 MPs por mês. Segundo Kramer, os números não deixam dúvida da prevalência do Executivo sobre o Legislativo.
- No dia em que acabarem com a medida provisória, terão que inventar a provisória medida - ironiza o cientista político.
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