Quatro quilômetros e 467 anos. Essa é a distância no espaço e no tempo que separa o primeiro escândalo de corrupção da história do Brasil e um dos últimos grandes casos de mistura indevida entre público e privado. Iniciada em 1549, a construção da primeira capital do país, Salvador, foi palco de fortíssimas suspeitas de desvios de dinheiro do Tesouro. Ironicamente, não muito longe dali, fica o canteiro de obras do polêmico edifício La Vue – pivô da demissão do então ministro Geddel Vieira Lima, acusado de ter feito tráfico de influência para liberar o empreendimento no qual comprou um apartamento na planta.
Veja no mapa a distância entre o “edifício do Geddel” e o centro histórico de Salvador
Entre os dois casos, uma infinidade de outros perpassam a história brasileira. Nenhum período sai ileso do mal da corrupção – Colônia, Império, República, em todas as suas fases. Isso que leva à pergunta: por que o Brasil não consegue se livrar desse mal? E mais importante ainda: o que tem de ser feito para reduzi-la?
Controle do dinheiro
“A forma como agem os corruptos vai mudando ao longo da história do Brasil”, diz a coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisa sobre a Corrupção da Unesp-Franca, a professora Rita de Cássia Biason. Ou seja, há sempre uma adaptação ao ambiente para continuar a cometer ilegalidades. “Mas o que sempre persiste é a falta de controle do dinheiro público.”
É nesse ponto que ela aposta estar a solução para o país conter a corrupção endêmica. Numa única frase: “Follow the money” (“Siga o dinheiro”), expressão popularizada com o escândalo do Watergate, nos EUA. “Follow the money não é só para descobrir o corrupto para puni-lo. É acompanhar o uso do dinheiro público para evitar que o desvio ocorra”, afirma Rita.
“Os tribunais de contas [TCs, responsáveis pela fiscalização dos gastos] têm de trabalhar”, diz ela. Segundo Rita, com a exceção recente do Tribunal de Contas da União (TCU), que teve papel importante no impeachment de Dilma Rousseff ao dar os argumentos técnicos de que ela cometeu crime fiscal, os outros TCs não funcionam direito.
Doutor em ciência política pela Universidade de Brasília, Leonardo Barreto afirma que a sociedade também tem de cumprir sua parte na fiscalização do uso do dinheiro público. Isso pode ser feito pela criação de instituições não governamentais que acompanhem a execução das políticas públicas.
O dilema da punição
Barreto diz que também é preciso criar mecanismos para tornar mais rápidos os julgamentos das altas autoridades envolvidas em denúncias de corrupção. “Se não tem julgamento, não tem punição. E isso cria um efeito pernicioso, que é acabar com a confiança da sociedade nas instituições”, diz o cientista político.
A professora Rita de Cássia concorda que é necessário haver a punição. Mas ela alerta para o fato de que o debate atual, que gira em torno das Dez Medidas de Combate à Corrupção, pode levar a uma grande frustração da sociedade. “O Brasil já tem leis para punir; o que falta é que elas sejam aplicadas.”
No livro Corrupção, Mostra Sua Cara (Editora Casa da Palavra), o historiador Marco Morel afirma que em quase todo o período colonial (1500-1822) e até em parte do período imperial (1822-1889) vigoraram no país as chamadas Ordenações Filipinas – que previa penas duríssimas (como açoites e exílio perpétuo) para quem aproveitasse a da proximidade com o poder público para obter benefício pessoal. “Eram leis duras, punições severas, ameaças terríveis. Mas se isso bastasse para controlar a corrupção, hoje não saberíamos sequer o significado da palavra”, diz Morel no livro.
Leis mais importantes
Para Rita de Cássia, o país inclusive deveria dar mais atenção às regras legais que busquem conter a corrupção em seu nascedouro, como a Lei de Licitações. “É uma lei ordenadora, que cria um comportamento.” E a atual legislação para concorrências públicas, diz a professora, deixa inúmeras brechas para desvios de recursos.
‘Personalidade’ do brasileiro não ‘condena’ o país ao atraso, diz historiador
- Fernando Martins
Há uma corrente no pensamento nacional que atribui a corrupção do país à personalidade do brasileiro, herdada dos portugueses. O historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), no clássico Raízes do Brasil, lançou a tese da “cordialidade”: a emoção – o coração (cordis, em latim, daí o termo) –, muito mais que a razão, é o que marca a raça brasileira. E isso, transposto ao trato dos assuntos públicos, provoca a confusão entre o público e o privado que leva ao “jeitinho” e à corrupção. Pois o brasileiro, um “homem cordial”, acaba por reproduzir no Estado as relações de família, o ambiente regido pelas emoções por excelência. Aos amigos e parentes, tudo; aos outros, a lei.
Por meio desse pensamento, o problema brasileiro seria mais de personalidade do que de instituições. Professor de História da UFPR, Luiz Carlos Ribeiro concorda que atribuir a corrupção às instituições oculta o fato de que elas são feitas por pessoas. Mas ele também critica o “racialismo” da tese de Holanda, pois conduz à conclusão de que os problemas nacionais são fruto de uma genética que condenaria o país ao atraso. “Instituições são construções culturais e não genéticas”, diz.
Um argumento a favor disso é que os próprios portugueses atualmente não têm problemas tão sérios de desvios de dinheiro púbico como os brasileiros. Portugal ocupa a 28.ª posição no ranking dos países menos corruptos da Transparência Internacional; o Brasil é o 76.º.
A solução na educação
“Como então se resolve isso [a corrupção]? É difícil. Mas é com mudanças culturais. Com educação, boas escolas”, diz Ribeiro. E também com mais democracia. “Países menos corruptos são os mais democráticos.” E isso implica envolvimento da sociedade na vida em comunidade: desde o simples ato de cuidar de seu lixo até a escolha dos políticos, que não chegam ao poder sem o voto popular.
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