O pensador italiano Nicolau Maquiavel (1469-1572) afirma em O Príncipe, clássico da ciência política, que é melhor para um governante ser temido do que amado pela população. Segundo ele, as pessoas se esquecem com facilidade do bem que lhes é feito, e logo se tornam ingratas. Mas o medo de ser punido é um companheiro de todos os dias. Não é coincidência que os Estados se assentam sobre leis que preveem punição a quem as desrespeita. Se sonego imposto de renda, posso cair na malha fina. Se passo o sinal vermelho, corro risco de ser multado. E assim por diante. Contudo, a facilidade de utilizar o temor para obter algum tipo de comportamento do cidadão tem deixado em segundo plano o uso, pelo poder público, do afeto que se tem com o local em que se mora como ferramenta de mobilização para o bem coletivo. Se bem usado, esse instrumento pode funcionar. Mas também pode ser um tiro pela culatra.
Curitiba já adotou essa estratégia no passado com relativo sucesso. No fim dos anos 1980 e início da década de 1990, a prefeitura explorou o slogan “Capital Ecológica”. O marketing oficial buscava criar uma nova identidade para Curitiba da qual o morador poderia se orgulhar: a cidade preocupada com o meio ambiente.
A partir dessa ideia, a administração buscou o engajamento do curitibano para seus projetos. Mas a propaganda não pregou no vazio. O município ganhava mais parques, mais áreas verdes e implantava o programa Lixo Que Não É Lixo. Os personagens publicitários da Família Folhas ensinaram a separar os materiais recicláveis antes de jogá-los na lixeira. A população (ou ao menos uma parcela expressiva dela) abraçou a causa e ajudou a tornar Curitiba, à época, referência em reciclagem.
“O programa de separação do lixo envolveu o curitibano em uma boa causa. Foi um ponto positivo [do uso pela prefeitura da emoção e do afeto que a população tem com a cidade para obter resultados]”, diz o professor Klaus Frey, que estudou o modelo de gestão de Curitiba naquele período e que hoje é coordenador do mestrado em política públicas da Universidade Federal do ABC, em São Paulo.
A pesquisa de Frey mostra que a administração municipal daquela época, ao usar a emoção e criar uma identificação do curitibano com a cidade, conseguiu ganhar um voto de confiança da população que possibilitou ao poder público realizar projetos e programas com a adesão da comunidade. E o rótulo usado não foi apenas o de Capital Ecológica. A prefeitura também explorou a ideia de cidade planejada, local onde o Brasil dá certo. O marketing eficiente levou o curitibano a pensar que era um privilegiado, que vivia numa cidade bem gerenciada.
O outro lado da moeda, de acordo com o estudo de Frey, é que essa identificação de Curitiba e do curitibano criou uma pressão moral que se dirigiu contra grupos sociais que não a representam, tais como os nordestinos. O risco, é claro, foi o aumento do preconceito com “gente de fora”.
Marginalização
Professora de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, Angela Cristina Salgueiro Marques também pesquisou o uso dos afetos para envolver a população e diz que essas campanhas ajudam a “pensar a cidade, seus problemas, seus aspectos positivos e suas necessidades de melhoria”.
Mas ela também aponta que esse tipo de marketing “afetivo” pode marginalizar grupos sociais porque produz “representações estereotipadas” e tende a esconder grupos considerados “menores”, com pouco potencial de gerar empatia com o restante da população. Outro problema é que, ao projetar e valorizar o comportamento do cidadão exemplar, o poder público passa a ideia de que o sucesso ou fracasso dos programas governamentais é dos próprios moradores – que não “amam” a cidade como deveriam ou a “amam” de modo insuficiente.
Angela faz ainda outro alerta: “Essa manifestação de afeto pela cidade pode ser confundida com participação política”. E não é. “Cuidar [da cidade] não é sinônimo desse tipo de participação: é uma forma cívica de participar da vida coletiva, mas dificilmente a expressão de afeto altera regras, promove mudanças estruturais ou assegura em si mesma a implementação de políticas e projetos.” Ou seja, a definição da política pública continua sendo atribuição da prefeitura.
Foi o que ocorreu na Curitiba dos anos 80 e 90, segundo o estudo de Klaus Frey. A prefeitura definia suas políticas públicas nos gabinetes e apenas “convidava” a população a implantá-la. Para ele, isso pode ser solucionado com uma gestão mais participativa, que dialogue com a população de forma efetiva.
Propagandas que marcaram época
Nas últimas décadas, uma série de campanhas educativas da prefeitura tiveram grande repercussão em Curitiba. Confira algumas delas
Lixo Que Não É Lixo
A campanha começou em 1989. Inicialmente, com a Família Folhas, que ensinou o curitibano a “se-pa-rar o lixo que não é lixo”. Na última década, outra campanha ensinava os cidadãos a separar os resíduos por tipo de materiais. Quem ensinou onde depositar o lixo foram os personagens Papelucho, Vidrovaldo, Ed Metal e Plastilde. Mas esses novos personagens não tiveram tanto apelo popular quanto as “folhinhas”.
Limpeza urbana
Uma bem-humorada campanha televisiva com o jogador de basquete Oscar Schimidt convidava os curitibanos a “jogar o lixo no lixo”. Na peça publicitária, moradores da cidade acertavam a cesta de lixo sempre que arremessavam algo. Mas Oscar errou, e acabou sendo reprimido por um velhinho: “O senhor não é daqui?”. A propaganda buscava valorizar o bom comportamento do curitibano em manter a cidade limpa. Apesar disso, a campanha também pode ser vista por outro lado: discriminava justamente quem não é daqui.
Bichos no trânsito
Um rato, uma perua e uma anta personificavam os maus motoristas da cidade de forma engraçada. O resultado se refletiu em números. Segundo dados da BPTran, entre 1997 e 1998, quando a campanha foi veiculada, houve uma queda de 60% nas infrações de trânsito ligadas à campanha (bloqueio de cruzamentos, ultrapassagem em sinal vermelho e estacionamento em fila dupla).
Vó Gertrudes
Vó Gertrudes era a personagem de uma irreverente campanha de educação no trânsito lançada em 2013. Ela vivenciava situações de risco nas ruas e dava suas “puxadas de orelha” nos maus motoristas.
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