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Urna eletrônica: depois de décadas de discussão, só em 1985 os analfabetos ganharam o direito ao voto | Antônio More/ Gazeta do Povo
Urna eletrônica: depois de décadas de discussão, só em 1985 os analfabetos ganharam o direito ao voto| Foto: Antônio More/ Gazeta do Povo

Bolsa Família

Eleitores mais pobres também são vistos com desconfiança

O preconceito não se dá apenas contra o voto dos analfabetos: a cidadania dos eleitores em geral, e dos de baixa renda em particular, é frequentemente questionada. Recentemente, por exemplo, surgiu nas redes sociais uma campanha dizendo que os beneficiários do programa Bolsa Família deveriam ter o seu direito ao voto suspenso. A lógica era que, por receberem um benefício do governo, votariam sempre no governo.

Tendência

O cientista político Lúcio Rennó, da Universidade de Brasília (UnB), afirma que estudos confirmam que, desde a implantação do programa, houve uma tendência de que os beneficiários votassem em no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, depois, em Dilma Rousseff. No entanto, ele afirma que isso nem de longe invalida o voto do eleitor, nem significa que ele não teve discernimento. "A gente brinca que se um eleitor pobre na Suíça recebe um benefício e vota no governo, isso é visto como política de Estado. Aqui, se o beneficiário do Bolsa Família vota no governo, vira assistencialismo", diz.

Segundo ele, trata-se de preconceito contra o eleitor mais simples, que além de ter uma situação econômica ruim é visto pela sociedade com desconfiança. "Todos somos beneficiados por programas do governo, e nem por isso o voto das outras pessoas é questionado", afirma Rennó.

No auge da fama da Legião Urbana, Renato Russo cantava, em meio a uma letra destinada a "celebrar a estupidez humana", que era preciso comemorar "o voto dos analfabetos". Talvez sem saber, estava participando de um debate de mais de cem anos e que segue vivo. Embora os brasileiros que não sabem ler e escrever tenham conquistado há quase três décadas o direito de votar, historiadores e cientistas políticos dizem que ainda há preconceito e afirmam que o país precisa avançar mais – por exemplo, garantindo também a cidadãos de baixa escolaridade o direito de disputar cargos públicos.

O histórico da exclusão dos analfabetos começa no século 19. A situação começou a virar há exatos 50 anos, quando o então presidente João Goulart incluiu o tema em suas "reformas de base". A proposta de dar o voto aos analfabetos ganhou adeptos até entre os militares (como o marechal Henrique Teixeira Lott, que havia disputado a eleição presidencial de 1960). Mas não decolou. Após o golpe de 1964, o presidente Castello Branco também defendeu a ideia, mas ela estava destinada a ficar mais duas décadas na gaveta.

Só em 1985, na passagem para a democracia, uma emenda constitucional permitiu o voto para os analfabetos. Mas para o cientista político José Carlos Brandi Aleixo, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), a mudança foi incompleta – primeiro, por tornar o voto do analfabeto facultativo, enquanto o dos demais cidadãos é obrigatório; segundo, por continuar impedindo que os analfabetos sejam eles próprios eleitos. "Todo cidadão deve ter o direito de votar e de ser votado", afirma.

De acordo com Aleixo, um levantamento feito pelo Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral mostrou que o Brasil foi o último país da América Latina a dar o voto aos analfabetos e pode ser o último a proibir expressamente sua eleição. Em artigo escrito com o também cientista político Paulo Kramer, da UnB, Aleixo afirma que há exemplos de boa governança de analfabetos, inclusive no Brasil.

Os dois contam o caso de um prefeito de Quixaba (PE) que apenas aprendeu a assinar para se eleger – e saiu do mandato com uma homenagem do Ministério da Educação. Contratou professores com ensino superior, construiu escolas e gastou 40% do orçamento com educação. O prefeito afirmava que só alguém como ele, que não tinha tido chances de estudar, sabia o quanto a educação era importante.

Preconceito

O preconceito contra o voto dos analfabetos vem de longe. "Trata-se de um preconceito baseado na crença de que saber ler e escrever são necessários para que a pessoa tenha discernimento", afirma a historiadora Ângela Castro Gomes, especializada na história do Brasil republicano. "Mas há provas de que a sabedoria não tem qualquer relação direta, imediata, com o letramento. As pessoas mais simples têm um conhecimento do mundo que não deve ser desprezado", afirma.

Segundo a historiadora, quando a proposta surgiu nas reformas de base, o país estava gestando o método de alfabetização de Paulo Freire. "O método justamente pregava que era preciso confiar na sabedoria dos mais simples na hora de ensinar a escrita a eles. Não eram crianças. Eram adultos inteligentes e que mereciam respeito", afirma. No entanto, a ideia de João Goulart foi vista como eleitoreira, já que a UDN imaginava que o partido do presidente, o PTB, sairia ganhando com o voto dos mais pobres. "Uma questão de cidadania foi derrubada em função de projetos eleitorais", diz.

Luta pelo direito de votar começou no século 19

O voto dos analfabetos foi proibido no país em 1881, pela Lei Saraiva. Antes, o critério para decidir quem tinha direito a ser eleitor era apenas a renda. Podia votar quem tinha o equivalente a certa quantia anual em dinheiro, não importando se sabia ou não escrever. Isso permitia que os fazendeiros ricos, mas iletrados, continuassem participando da vida política. Depois da nova lei, segundo levantamento citado pelo historiado Sérgio Buarque de Hollanda, apenas 1,5% dos brasileiros continuaram votando – o que dá uma noção do nível de educação do país à época.

Um artigo dos cientistas políticos José Carlos Brandi Aleixo e Paulo Kramer, que retoma a discussão desde o início, mostra que já no século 19 havia quem defendesse o direito dos analfabetos. José Bonifácio (o Moço), dizia em 1879 que quando o país precisou de soldados para lutar na Guerra do Paraguai, anos antes, não se exigiu teste de leitura e escrita de ninguém. Ou seja, para lutar e morrer pelo país, os analfabetos serviam, mas não para votar. Pouco depois, Joaquim Nabuco dizia que o problema das eleições brasileiras não era a falta de instrução dos eleitores, mas a corrupção e as fraudes.

Um argumento comum, usado pelo deputado Lauro Sodré em 1891, era o de que os analfabetos já eram vítimas do sistema educacional, e não poderiam ser duplamente punidos. Ao discutir a Constituição da República, que mantinha o veto aos analfabetos, Sodré disse que não poderia dar seu voto "a este verdadeiro esbulho com que se tenta ferir todos os que não sabem ler nem escrever, ainda que trabalhem na obra do progresso da Nação".

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