Ditadura militar se espelhou no Estado Novo de Getúlio
Se Getúlio Vargas inspirou o nacionalismo reformista de Jango, deu também as armas para combatê-lo. A ditadura iniciada com o golpe de 1964 se espelhou no regime de força implantada pelo próprio Getúlio em 1937, o Estado Novo. Na época, Vargas usou um falso plano comunista como símbolo da ameaça que a nação corria. Como havia ocorrido uma tentativa real de tomada de poder pelos comunistas em 1935 (a Intentona), a instalação do regime de força vingou. Vargas cancelou as eleições, invalidou a Constituição e ocupou o poder sem prazo para deixá-lo. Seus instrumentos para calar a oposição incluíram o uso de uma polícia política e da censura. Em 64, a ameaça comunista novamente foi o mote para instalar a ditadura. O filósofo Roberto Romano, professor de Ética da Unicamp, diz que há muito mais que semelhanças entre o Estado Novo e o regime militar. "Mais do que isso: são a mesma ditadura". E não se trata só de políticas semelhantes de repressão. "As mesmas pessoas deram sustentação para os ditadores nos dois casos."
O suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, é visto por muitos como o primeiro ato da trama que levou ao golpe militar dez anos depois contra João Goulart, o Jango. Nos dois casos, tratava-se de embates entre os projetos de país que vinham dominando a cena nacional desde os anos 1930. De um lado, na expressão do cientista político Adriano Codato, da UFPR, estava o "reformismo nacionalista" de Vargas e Jango. De outro, o "liberalismo conservador" da UDN de Carlos Lacerda.
É claro que os dois eventos têm contextos diferentes. A historiadora Ângela Castro Gomes, professora da Universidade Federal Fluminense e da UniRio, diz que é preciso tomar cuidado com uma interpretação simplista que faça parecer que desde 54 o Brasil estava fadado a cair em uma ditadura. "Uma coisa não leva à outra, simplesmente", diz ela. Mas é evidente que muitos fatores aproximam as duas datas.
Vargas havia triunfado sobre os adversários diversas vezes desde 1930, quando fez a Revolução e tomou o poder após ter sido derrotado como candidato a presidente num golpe na ordem constitucional. Em 1932, enfrentou a revolta dos liberais paulistas e saiu por cima. Em 1937, à beira de ter de entregar o poder, deu o golpe que iniciou a ditadura do Estado Novo. Deixou a Presidência em 1945. Mas voltou em 1950 pelo voto popular. Suicidou-se em 1954 após o chefe de sua guarda pessoal, Gregório Fortunato, ter sido apotando como o mandante de um atentado contra Carlos Lacerda o que levou os militares e a imprensa a exigirem sua renúncia. Era a chance de a UDN tomar o poder.
Mas morte de Getúlio virou a opinião pública a seu favor e deu dez anos de sobrevida ao seu projeto político, marcado pelo apelo às classes trabalhadoras aliado ao nacionalismo e estatização da economia. Seria essa cartilha que Jango, ministro do Trabalho no último mandato de Vargas, seguiria como presidente até ser deposto em 1964.
O "populismo" de Vargas era uma reação a um regime oligárquico que o Brasil tinha vivido até 1930. Getúlio chegou ao poder num momento em que o país começava a ter trabalhadores urbanos e uma classe média em quantidade expressiva os governantes anteriores não haviam percebido a importância desses segmentos e continuavam vendo os movimentos sociais como caso de polícia. Vargas deu garantias aos trabalhadores e ganhou a eterna gratidão de parte importante do eleitorado. Ao mesmo tempo, recebeu a antipatia dos conservadores que viriam a se unir na UDN contra ele.
Na sua carta-testamento, lida pelo próprio Jango no funeral, Getúlio diz que sua morte não era uma derrota, mas uma vitória: "Esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém". Por vias tortuosas, seu grupo político voltaria ao poder pouco tempo depois, após a estapafúrdia renúncia de Jânio Quadros em 1961, já que Jango era o vice. E o cenário estava pronto para mais uma disputa de vida e morte entre getulistas e antigetulistas.
Militares
Os árbitros da disputa, porém, nem sempre eram os eleitores. Nos 15 primeiros anos de poder, Getúlio, por exemplo, dispensou o povo da tarefa de renovar seu mandato. Não houve eleições presidenciais. E, sempre que precisou, apelou para os militares. Foi com eles que preparou a Revolução de 1930 e, com seu apoio, instituiu a ditadura em 1937. Getúlio saiu derrotado quando perdeu o apoio dos quartéis, em 1945. Vítima ele próprio de um golpe, foi substituído na Presidência por um marechal, Eurico Gaspar Dutra, que disputou a eleição contra outro militar, o brigadeiro Eduardo Gomes.
A tradição de interferência militar na vida política do país vinha de longe. Em 1889, foram eles que derrubaram o Império e deram início à República. Em 1922, foram os oficiais de baixa patente que criaram o movimento mais importante de contestação à oligarquia vigente: o tenentismo. Eram os militares que controlavam as maiores ameaças ao establishment (como em Canudos e no Contestado) e que traziam outros tantos perigos ao governante de plantão (como na Revolta da Armada e no levante dos 18 do Forte).
Nos tensos dez anos que separaram a morte de Getúlio e a queda de Jango, ficou visível a propensão do Exército de se imiscuir na política tanto tentando dar golpes como tentando evitá-los. No vácuo que se seguiu ao suicídio de Vargas, coube ao marechal Henrique Teixeira Lott dar um "golpe preventivo" em 1955 para garantir a posse de Juscelino Kubitschek ameaçada por uma trama urdida pelo governador da Guanabara, Carlos Lacerda.
Em 1961, outro momento de instabilidade: Jânio Quadros renunciou, numa suposta tentativa de voltar à Presidência, mais forte e com mais poderes, nos "braços do povo". A aposta era de que o Congresso não aceitaria a renúncia por temer a posse do "esquerdista" Jango. Havia o rumor de que os militares impediriam a posse do vice. Mas os congressistas aceitaram rapidamente a saída de Jânio, frustrando seus planos. E Jango, que estava em viagem à China comunista, teve de aceitar um "golpe branco" imposto pelo Congresso, dividindo poderes com um primeiro-ministro. A democracia salvou-se por três anos. Mas o ar do país estava carregado de golpismo, como se fosse pólvora em suspensão. Bastava uma fagulha para tudo explodir. E as principais lideranças políticas do país estavam brincando com fogo. "Nem a direita nem a esquerda queriam a democracia no país. Não é surpresa que a tenhamos perdido", diz a historiadora Ângela Castro Gomes.
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