Discussão sem fim
Veja como a História diferencia golpe de revolução:
Golpe
Conforme explica o italiano Norberto Bobbio, um dos maiores filósofos e historiadores do século 20, golpe de Estado é um método para conquistar o poder, sem conotações políticas ou socioeconômicas, que consiste na simples mudança daqueles que estão no comando das instituições. Trata-se de um ato efetuado por órgãos do próprio Estado, na maioria dos casos levado a cabo por militares. Segundo ele, as consequências mais habituais de um golpe são o reforço da máquina burocrática e policial do Estado, além da eliminação ou dissolução dos partidos políticos. Diversos dicionários de historiadores brasileiros classificam as ações de 1964 como golpe.
Revolução
Norberto Bobbio explica que revolução é a tentativa, acompanhada do uso da violência, de derrubar as autoridades constituídas e de substituí-las com o objetivo de efetuar profundas mudanças nas relações políticas, no ordenamento jurídico-constitucional e na esfera socioeconômica. De acordo com ele, aí reside a principal diferença em relação a um golpe. Além disso, enquanto uma revolução é essencialmente um movimento popular, o golpe de Estado é realizado por um pequeno número de pessoas, já pertencentes à elite.
A oposição sistemática ao presidente João Goulart foi escancarada na primeira página do jornal carioca Correio da Manhã no dia 31 de março de 1964: "Basta! O Brasil já sofreu demasiado com o governo atual". O recado direto na capa de um dos maiores jornais do país não foi a única má notícia naquela manhã para Jango, que estava no Rio de Janeiro. Desde a madrugada, o general Olímpio Mourão Filho marchava com sua tropa de Juiz de Fora (MG), onde comandava a 4.ª Região Militar e a 4.ª Divisão de Infantaria do 1.º Exército, em direção ao Rio, convicto de que era preciso salvar o país do comunismo. No meio do caminho, recebeu o reforço de dois outros regimentos, vindos de Belo Horizonte e São João Del Rei.
O presidente não contava com a ação iniciada por Mourão. Tampouco o general Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exército que, naquele momento, era o principal líder dos conspiradores. "Isso é uma precipitação, vocês vão estragar tudo! O Jango irá esmagá-los!", disse Castelo, ao pedir a Mourão que desistisse da empreitada. O temor era de que a manobra intempestiva colocasse em xeque o plano que já vinha sendo construído pelo alto comando das Forças Armadas.
Jango então ordenou que dois grupamentos do Exército detivessem o avanço de Mourão. Mas as tropas aderiram ao movimento revoltoso. Percebendo a gravidade da situação, o presidente convocou os comandantes das quatro jurisdições do Exército para garantir a legalidade. Recebeu apoio do 1.º Comando (responsável pela Guanabara, Rio, Espírito Santo e Minas) e do 3.º (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Mas ouviu um não do 4.º Comando (estados do Nordeste). O fiel da balança seria o 2.º Exército (São Paulo e Mato Grosso), comandado pelo general Amaury Kruel, amigo pessoal de Jango e padrinho de um dos filhos dele. Por telefone, Kruel exigiu em troca do apoio que João Goulart rompesse publicamente com o movimento sindical e fizesse uma declaração anticomunista. "General, eu não abandono meus amigos. Se fizer isso, demonstro medo. E, com medo, não se governa o país. E tu sabes muito bem que eu não sou comunista!", disse o presidente.
Nesse meio-tempo, Jango recebeu a notícia de que os EUA iriam reconhecer um eventual governo provisório brasileiro e, se necessário, dariam suporte militar aos golpistas. Acuado, o presidente decidiu deixar o Rio no dia 1.º de abril. Voou para Brasília. Permaneceu poucas horas na capital e, no fim da noite, embarcou rumo ao Rio Grande do Sul, seu estado natal. De lá, pretendia resistir. Mas, enquanto voava, o presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, abriu uma sessão legislativa na qual declarou vaga a Presidência, pelo fato de Goulart ter abandonando Brasília uma flagrante inconstitucionalidade, uma vez que a Constituição exigia autorização dos congressistas apenas para viagens internacionais do presidente. Em apenas 16 minutos e sem debates, o parlamentar anunciou que o posto seria assumido interinamente pelo presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli que pouco mais tarde seria substituído por Castelo Branco. Naquela madrugada de 2 abril terminava o governo Jango. Num golpe, conforme dita a definição histórica. Ou numa revolução, como diziam os militares e seus apoiadores.
Já afastado da Presidência, Jango recebeu no Rio Grande do Sul o apoio do 3.º Exército, o mais bem armado do país. Mas se manteve inerte. Assistiu de longe à própria derrubada sem esboçar reação. Se decidisse lutar, talvez levasse o país à guerra civil. Mas, como reflexo da inércia de Jango, que se asilou no Uruguai a partir de 4 de abril, os movimentos sociais e as organizações da esquerda não se moveram. "A polarização da sociedade, a paranoia da Guerra Fria, a instabilidade política e a impossibilidade de se manter um governo de conciliação podem ter sido fatores preponderantes para não ter havido resistência", diz a professora de História Contemporânea Caroline Silveira Bauer, da Universidade Federal de Pelotas. Contribuiu ainda para a falta de reação popular uma manobra mal calculada dos apoiadores de Goulart. Em repúdio à ação militar contra o presidente constitucional, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) convocou uma greve geral e acabou paralisando todo o sistema público de transportes. Se havia pessoas dispostas a apoiar o presidente deposto, elas não conseguiram sair às ruas.
Em 9 de abril, uma junta militar editou o Ato Institucional (AI-1): estavam suspensas as garantias constitucionais por seis meses. Além disso, de forma genérica, o texto permitia a abertura de Inquéritos Policiais Militares (IPMs) para apurar crimes contra o Estado e a ordem. Também houve cassações em série de líderes políticos não alinhados para evitar uma oposição ao golpe. "O aparelho sindical foi desmontado, os militares comunistas foram perseguidos, líderes estudantis e parlamentares trabalhistas foram cassados ou se exilaram. Isso impediu qualquer reação popular ao golpe", diz Adriano Codato, professor de ciência política da UFPR. Jango, que tanto apelara às massas, estava sozinho. O golpe havia triunfado, abrindo 21 anos de ditadura.
Foi esse o cenário que se desenhou para o jornalista Milton Ivan Heller, que trabalhava na sucursal de Curitiba do Última Hora o único dos grandes jornais nacionais que defendia Jango. "A partir daquele momento, viramos um jornal maldito", recorda-se Heller. Ele e mais 20 colegas foram denunciados por envolvimento em "atividades subversivas, comunistas e contrarrevolucionárias". Se condenados, poderiam pegar pena de 20 a 44 anos de prisão. Bastante visado em meio à caça às bruxas, Heller conta que colou um bilhete atrás da porta de casa com o telefone do advogado René Dotti, que se notabilizou por defender gratuitamente dezenas de presos do regime militar. "Disse para minha mulher ligar naquele número se eu não voltasse."
Sem emprego, passou a vender livros. "Havia livros horríveis, mas os amigos compravam para me ajudar", relembra. Dizendo-se um homem privilegiado por não ter sido preso ou torturado, ele se livrou do IPM apenas em 1968, quando voltou ao jornalismo. "Mesmo assim, a gente continuou sendo considerado comunista. Ninguém mais nos convidava para festas, atravessavam a rua quando nos viam." A ditadura, após haver triunfado nas ruas, agora tinha sua primeira grande vitória nas mentes dos brasileiros: estava plantada a semente do medo.
Como a PF costurou diferentes tramas para indiciar Bolsonaro
Cid confirma que Bolsonaro sabia do plano de golpe de Estado, diz advogado
Problemas para Alexandre de Moraes na operação contra Bolsonaro e militares; assista ao Sem Rodeios
Deputados da base governista pressionam Lira a arquivar anistia após indiciamento de Bolsonaro
Deixe sua opinião