Em dezembro de 1989, o Brasil escolheu seu primeiro presidente eleito pelo voto direto após um lapso democrático de 29 anos. Menos de três anos depois, o eleito Fernando Collor de Mello foi afastado em um inédito e (ainda único) processo de impeachment aprovado pelo Congresso contra um presidente do país. Nos quase mil dias em que ocupou o Palácio do Planalto, o hoje senador Collor foi protagonista de uma trágica derrocada, em clima de ópera-bufa, que tirou a inocência da restabelecida democracia brasileira.
A Gazeta do Povo inicia hoje uma série de reportagens, a serem publicadas sempre nos terceiros domingos do mês, relembrando os 20 anos dos turbulentos episódios que levaram à derrubada do mais jovem presidente da História do país, a partir de quatro enfoques: a participação da imprensa; a manifestação popular; a articulação política que causou (e a que não evitou) a queda; e os personagens principais do escândalo.
Irmão contra irmão
O presidente que se elegeu prometendo modernizar o país, acabar com a inflação e "caçar" marajás e corruptos começou a cair na última semana de maio do ano de 1992. Ele, que três anos antes tinha sido incensado pelos maiores veículos de comunicação do país como um jovem e promissor político, era duramente atingido justamente pela imprensa, na bombástica entrevista de Pedro Collor, seu irmão mais novo, à revista Veja na edição daquele fim de maio.
Pedro Collor acusava Paulo César "PC" Farias, o ex-tesoureiro da campanha do irmão, de extorquir empresas e realizar tráfico de influência em nome do presidente. Pedro Collor já vinha revelando uma série de denúncias contra PC Farias, mas até então tinha poupado o presidente. O irmão caçula também acusava Collor de ser sócio de PC em negócios ilegais para levantar recursos que custeavam gastos pessoais e de campanhas políticas.
A briga entre os irmãos remontava à disputa pelas empresas da família, das quais a mais simbólica era o jornal Gazeta de Alagoas. Sentindo que o presidente se movimentava para derrubá-lo do controle dessas empresas, Pedro passou a recolher documentos da atuação criminosa de PC.
Em 25 de maio, no dia seguinte à publicação da entrevista, o assunto foi exibido no Jornal Nacional, da Rede Globo, com uma reportagem de mais de nove minutos. E também ganhou a manchete do jornal O Estado de S. Paulo, que repercutiu a decisão de Fernando Collor processar o irmão.
No dia seguinte, Pedro Collor afirmou à imprensa que PC Farias havia lhe oferecido US$ 50 milhões para que desistisse das denúncias contra o presidente, mas ele não aceitou o dinheiro porque sua luta "não tinha preço". As acusações minaram a sustentação política do presidente e, em 27 de maio, por solicitação do PT, o Congresso instaurou uma CPI para investigar o caso.
Um mês depois, em 28 de junho, a revista IstoÉ publicou entrevista com o motorista Eriberto França na qual ele dizia que a empresa Brasil-Jet, de PC Farias, pagava as contas da Casa da Dinda, onde morava o presidente. A declaração fechou ainda mais o cerco contra Collor, que acabou renunciando à Presidência em 29 de dezembro daquele ano.
Mídia mudou de postura em relação a Collor
A atuação da imprensa marcou de forma decisiva a ascensão e a derrocada de derrocada de Fernando Collor na Presidência. De esperança renovadora e bastião anticorrupção, ele passou a inimigo n.º 1 da República nas páginas de jornais e revistas e também na televisão.
As razões da mudança ainda intrigam especialistas em história da comunicação. O historiador Gilberto Maringoni, doutor em História pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero, lembra que grande parte dos principais veículos de comunicação apoiou abertamente a campanha de Collor à Presidência. "Os principais jornais ficaram entusiasmados, pois o projeto do Collor coroava uma disputa de rumos no fim dos anos 80. Ele era visto como a saída para que o mercado fosse o polo dinâmico e comandasse a economia. O Collor tinha o projeto econômico que a elite queria", disse.
Mas o então presidente, diz Maringoni, cometeu dois erros políticos: foi desleixado para manter maioria no Congresso e entrou em confronto com uma parte expressiva do empresariado. Para ele, isso teria feito a imprensa mudar de postura.
Maringoni diz ainda que a mobilização popular nascida a partir da cobertura investigativa da imprensa, que levou ao impeachment, teve dois ingredientes principais: a crise econômica com a volta da inflação e a facilidade da população entender o escândalo. "Às vezes a corrupção é abstrata: remessas de dólares, contas offshore e essas coisas. Naquele caso, não; havia contornos visíveis: um Fiat Elba, a reforma da casa, a briga entre irmãos, a compra de roupas íntimas para a primeira-dama com cheques do PC e o suposto adultério com a linda cunhada Thereza Collor. O povo se interessou: Tem sacanagem aí." Ele lembra que a CPI que investigou o caso foi acompanhada como uma novela, um "reality show político" que a imprensa soube explorar.
Para o professor de História da Comunicação, Luiz Felipe Francischini, em um cenário em que tudo era novidade democracia, eleições, marketing político e imprensa livre , a mídia cumpriu seu papel no episódio. Mas falhou ao demorar a mudar de posição em relação ao presidente. "Nos primeiros dias de governo, a grande imprensa foi até simpática com o confisco da poupança [determinado por Collor em 1990 para controlar a inflação]. Só quando as denúncias viraram escândalo é que passaram a dar espaço maior e melhor para as críticas ao governo."
As reportagens: 17 de junho: O papel da imprensa, 15 de julho: O enredo e os personagens, 19 de agosto: Os caras-pintadas, 16 de setembro: Consequências 20 anos depois.