Enquanto os militares estudavam as estratégias para dar o golpe no governo do presidente João Goulart, no começo de 1964, Dilma Vana Rousseff, então com 16 anos, se preparava para ingressar no Colégio Estadual Central, o maior e mais politizado de Belo Horizonte. Em meio às aulas regulares de Sociologia, Filosofia e História, os horários livres da futura presidente do Brasil também seriam ocupados pela discussão de textos. Entre os autores mais lidos estavam Fernando Henrique Cardoso, Sérgio Buarque de Hollanda e o filósofo francês Louis Althusser.
As leituras eram orientadas por Apolo Heringer Lisboa, universitário de Medicina e três anos mais velho que Dilma. Ele era um dos diretores da Polop (Organização Política Operária), que dava cursinhos de política para dezenas de secundaristas. "Fui um professor informal de marxismo, de política e de história da humanidade. Era uma coisa limitada filosoficamente. Mas, para a gente, que era educado em igreja, com aquela visão mais limitada ainda, era uma espécie de revelação. E a turma tinha muita vontade de estudar", relembra Lisboa na varanda de sua casa, na Zona Sul de Belo Horizonte.
Os encontros eram feitos às escondidas, com grupos pequenos, de quatro ou cinco pessoas, para não chamar a atenção das autoridades militares, que tomaram o poder em 31 de março de 1964. Dois dias depois, Jango deixara Brasília e o general Costa e Silva se declarara o comandante em chefe do Exército Nacional. O general Castello Branco, indicado para a Presidência da República, editaria o Ato Institucional n.º 1, que, entre outras coisas, cassou mandatos eletivos e suspendeu os direitos políticos por dez anos. Segundo extensa pesquisa feita pelo jornalista Elio Gaspari para sua série Ilusões Armadas, que retrata o regime militar, cerca de 5 mil pessoas foram presas nas semanas seguintes à deposição de Jango. Além disso, sete em cada dez confederações ou sindicatos de trabalhadores foram fechados.
A sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) no Rio de Janeiro foi incendiada, inaugurando a era de repressão aos estudantes. As reações foram arquitetadas nos grêmios e diretórios estudantis, que ainda funcionavam e como. O livreiro Marco Antonio Meyer, que estava no Ensino Médio do Colégio Estadual na mesma época que Dilma, se orgulha ainda hoje dos feitos de sua gestão à frente do Diretório Estudantil (DE), entre 1965 e 1968. Os alunos do Estadual e dos anexos da Serra e da Gameleira (entre 6 mil e 8 mil) contavam com uma cooperativa de livros com preços módicos, barbeiro e dentistas. "Para conscientizar os alunos fazíamos um trabalho progressivo e uma série de eventos culturais. Muitos debates, inclusive sobre maconha, conversas com grupos de teatro e apresentação de filmes engajados", conta. Ele disse que ficou preso por seis meses por ter passado Os Companheiros, de Mario Monicelli.
Dilma não participou da chapa de Meyer, mas outro petista e futuro ministro sim: Fernando Pimentel, futuro prefeito de Belo Horizonte. "Na eleição deste ano retribuí e votei na Dilma. Porque com certeza ela me apoiou no DE", disse Meyer. Ela conseguiu concluir o Estadual antes dele, e em 1967 ingressou na Faculdade de Economia da UFMG. Consta que ajudou a eleger como representante de classe José Aníbal, hoje deputado federal pelo PSDB. Em setembro desse ano, com apenas 19 anos, casou com o jornalista Cláudio Galeno Linhares em cerimônia civil. Todos os personagens deste parágrafo militavam na Polop, organização muito forte em Minas Gerais.
Guerrilha
A Polop começou a ruir com a disseminação das ideias de Régis Debray, intelectual francês que escreveu Revolução na Revolução, descrevendo a luta cubana de Fidel Castro e Che Guevara. A experiência bem-sucedida de armar guerrilhas inspirou muitos militantes. "Aí tivemos um racha e surgiu o Colina, para onde foram 90% das pessoas. Apenas 10% ficaram no Polop, que a gente dizia que eram os medrosos", relembra Apolo Lisboa, que é médico e ambientalista. O Comando da Libertação Nacional defendia as ações armadas, que começaram a se proliferar, também pelas mãos dos participantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella.
Em março de 1968, a ALN explode uma bomba no Consulado dos Estados Unidos em São Paulo. Três meses depois, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) faz o mesmo no Quartel-General do 2.º Exército, matando um soldado. Em julho, o Colina é responsabilizado pela morte do major alemão Edson Von Westernhage e, em agosto, uma ação da VPR mata o capitão americano Charles Chandler. Aqui e ali, assaltos a banco.
A revolta estudantil estava no ápice. No fim de março daquele ano, com a morte do estudante Edson Luís no Restaurante Calabouço, da Universidade do Rio de Janeiro, milhares foram às ruas em várias cidades protestar. Em 21 de junho, a capital fluminense viveu aquilo que ficou conhecido como "sexta-feira sangrenta", com confrontos entre manifestantes e policiais. O saldo: quatro mortos, 60 feridos e mais de mil presos. A resposta veio quatro dias depois, com a Passeata dos Cem Mil, na Cinelândia. Não só estudantes, como religiosos e trabalhadores exigiam a redemocratização. "Quem sabe faz a hora não espera acontecer".
Os versos de Geraldo Vandré, de 1968, podem hoje ser confundidos com um clichê, depois de décadas de repetição. Mas a música é tida como a síntese do espírito da resistência à ditadura militar no Brasil.
Segundo Apolo, os militantes não queriam apenas derrubar a ditadura, mas sim mudar tudo. "A gente não tinha fronteira, queria transformar o mundo. O nosso mote era queremos o impossível. O que era possível não nos interessava", conta Lisboa. A disposição dos estudantes era inflada pelos acontecimentos em várias partes do mundo. "Teve a Revolução Cubana, em 1959, e as imagens da Guerra do Vietnã mostravam que os Estados Unidos, a maior potência mundial, estavam sendo derrotados por um povo que andava de chinelos de dedo", diz Marco Meyer. Além disso, houve os protestos na França e em Praga ao longo de 1968. "Era uma conjuntura internacional por maior liberdade sexual e política. Foi uma época bastante efervescente", completa.
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