O foro privilegiado das autoridades brasileiras não tem paralelos no mundo. Levantamento feito pela reportagem em 20 países da América, Europa, África e Ásia mostra que o benefício aqui não só atinge um número maior de pessoas como pode ser usufruído por autoridades dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Enquanto em alguns estados, como no Rio de Janeiro, até vereadores usam o direito do julgamento em instâncias diferentes do restante da população, nos Estados Unidos, nem o homem mais poderoso do mundo, o presidente Donald Trump, tem o benefício. Por lá, tanto integrantes do Executivo como os parlamentares podem ser julgados na primeira instância da Justiça.
Na Alemanha, a primeira-ministra Angela Merkel também tem tratamento comum. Apenas o presidente, que exerce função menos relevante no país, pode ser julgado pela Corte Constitucional nos casos de crime de responsabilidade — desde que autorizado pelas Câmaras do Parlamento.
Foro privilegiado no mundo
O estudo “Foro Privilegiado: pontos negativos e positivos”, produzido pelo consultor legislativo da Câmara dos Deputados Newton Tavares Filho, em julho do ano passado, analisou como funciona o sistema de julgamento de autoridades em 16 países (França, Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, Áustria, Dinamarca, Noruega, Suécia, Estados Unidos, México, Venezuela, Colômbia, Peru, Chile e Argentina). “Nenhum país estudado previu tantas hipóteses de foro privilegiado como previu a Constituição Brasileira de 1988”, conclui o o relatório do consultor.
Não há dados precisos sobre o número exato de autoridades com foro no Brasil, mas levantamento mais recente feito pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe) mostrou que são 45,3 mil beneficiados nas diversas instâncias do Poder Judiciário. O número é mais do que o dobro da estimativa conhecida até então — de 22 mil pessoas com foro especial.
Além dos países avaliados pelo estudo da Câmara, o jornal “O Globo” ainda levantou como funciona o foro na China, na Inglaterra e em dois países da África: Cabo Verde e Moçambique. No país asiático, os 2.987 integrantes do Congresso Nacional Popular chinês só podem ser julgados com a autorização da cúpula da Casa, formada por 178 representantes.
A Inglaterra é outro país que não concede o benefício nem para a sua mais alta autoridade do governo. A primeira-ministra Theresa May ou qualquer um de seus ministros e parlamentares estão sujeitos a julgamento na primeira instância da Justiça como qualquer outro cidadão do país.
Em Cabo Verde, país da África que, assim como o Brasil, foi colonizado por Portugal, a Constituição não prevê o benefício do foro. Já em Moçambique, os deputados só podem ser presos em flagrante e processados após autorização votada no Parlamento.
Não poderia dizer que não há nenhum país que seja como o Brasil no mundo porque teríamos que pesquisar constituições de todas as nações, o que é muito difícil, mas o caso brasileiro é raro. Os países mais desenvolvidos não têm foro e as autoridades respondem diante dos juízes de primeiro grau.
De acordo com Vladimir Passos de Freitas, ex-presidente do TRF-4, a ampliação do número de autoridades com direto ao benefício no país aconteceu principalmente a partir da promulgação da Constituição de 1988.
“Houve um alargamento do número de autoridades com direito ao foro. A Constituição também aumentou o número de juízes e municípios. As constituições estaduais, que foram promulgadas em seguida, ampliaram o foro para outras autoridades, como comandantes da Polícia Militar e delegados”, explica.
Como presidente do TRF-4, Freitas viveu as dificuldades que os tribunais enfrentam para acompanhar a fase de instrução de processos criminais contra autoridades. A função original dessas instituições é julgar apenas recursos.
“O meu tribunal não terminava as ações, que são complicadas. Desembargador não é preparado para isso [instruir processos com autorização para quebras de sigilo telefônico e bancário, por exemplo]”, conta Freitas.
Colômbia
De acordo com o ex-presidente do TRF-4, o único país que se aproxima do Brasil no foro privilegiado, mas, mesmo assim, com uma quantidade menor de autoridades beneficiadas, é a Colômbia. No país da América do Sul, o presidente só pode ser julgado com autorização do Senado. Parlamentares, o procurador-geral, ministros, governadores, magistrados, generais e almirantes também têm o foro.
Assim como no Brasil, na Colômbia já ocorreram casos de políticos que se valeram do foro privilegiado para tentar postegar apurações. No escândalo dos parapolíticos, uma ampla investigação iniciada em 2006 que apurou a ligação entre congressistas e grupos paramilitares de extrema-direita, mais de 30 deputados chegaram a renunciar ao mandato para que o processo fosse para outra instância e, assim, ganhar mais tempo. Em 2009, no entanto, a Corte Suprema de Justiça decidiu que os políticos não tinham o direito de abrir mão do foro.
Suécia
A análise das constituições pelo mundo mostra ainda que o benefício de escapar das regras comuns da Justiça muitas vezes é dado a monarcas. Na Suécia, por exemplo, o rei tem imunidade absoluta. Já as demais autoridades do país não possuem qualquer privilégio de foro. Na vizinha Noruega, o rei também está fora do alcance do Poder Judiciário. Mas os representantes do Conselho de Estado, da Corte Suprema e do Parlamento contam com o foro.
Modelos semelhantes ao proposto pelo ministro do Supremo Tribunal federal (STF) Luís Roberto Barroso, na semana passada, de só conceder o benefício para os crimes cometidos no exercício do cargo, já são adotados em outros países. Em Portugal, por exemplo, o presidente, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia são julgados pelo Supremo Tribunal de Justiça apenas em casos de crimes eventualmente praticados no exercício do mandato. Delitos cometidos no período fora da função são julgados após o político deixar o poder, nos tribunais comuns. Parlamentares do país não têm qualquer benefício.
A proposta de Barroso tem o objetivo de tentar desafogar o STF, que hoje tem dificuldade para dar andamento a todas as ações penais que envolvem políticos. Estudo da FGV Direto Rio mostrou que apenas 0,74% dos processos concluídos no Supremo, entre 2011 e 2016, resultaram em condenação.
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