O governo está com uma medida provisória pronta, que autoriza o avanço de projetos de infraestrutura dentro de terras indígenas. A MP prevê a criação de uma compensação financeira que seria paga aos índios, em razão da utilização de parte de suas terras homologadas. No caso de projetos de construção de hidrelétricas, o texto estabelece ainda uma participação anual no resultado da operação da usina destinada às comunidades indígenas que sejam diretamente afetadas pelo empreendimento.
O jornal O Estado de S. Paulo teve acesso ao texto integral da MP. A compensação financeira que foi estabelecida corresponde a um índice de 2% sobre o valor da terra. O cálculo desse valor levaria em conta uma fórmula que considera o preço estimado da terra calculado pelo Incra, multiplicado por metro quadrado que seja afetado pela obra.
Contra MP do royalty indígena, Funai critica ‘açodamento’ do governo
A proposta do governo de liberar as terras indígenas para projetos de infraestrutura, mediante o pagamento de um royalty para os índios, caiu como uma bomba na Fundação Nacional do Índio (Funai). Em memorando enviado na terça-feira, 2, diretamente ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves da Costa, foi taxativo ao se mostrar contra a medida provisória proposta pela Casa Civil da Presidência da República. Costa fez ainda críticas duras sobre a pressa do governo em tentar levar adiante uma decisão tão complexa por meio de medida provisória.
O jornal O Estado de S. Paulo teve acesso ao memorando que a Funai encaminhou ao Ministério da Justiça. No documento, o presidente da fundação afirma diz que, após analisar a medida, “verificam-se inúmeros vícios formais e materiais, além de inconsistências na medida ora proposta, bem como se mostra inoportuno o momento de sua proposição”.
Segundo a Funai, a proposta, feita a toque de caixa, desrespeita ainda princípios democráticos e de consulta aos povos que podem ser atingidos pelos empreendimentos. “Não comungamos com o açodamento com que o assunto passou a ser tratado”, afirma o presidente da fundação, acrescentando que já estão em andamento discussões interministeriais sobre o assunto e que estas “resguardavam com mais clareza os interesses dos indígenas, sob o prisma da proteção de direitos e da dignidade da pessoa humana, e foram, em sua maioria, descartadas na minuta ora analisada”.
No comando da Funai há quatro meses, João Pedro Gonçalves da Costa declarou ainda que, “em um governo popular e nitidamente democrático, não nos parece configurar como boa prática a completa ausência de participação da população que será diretamente afetada nesse processo de construção normativa”.
O memorando chama a atenção para a inconveniência do momento para tratar deste assunto, ao mencionar a realização da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista”, prevista para acontecer entre os dias 14 e 17 de dezembro. “A edição de um ato de tal amplitude, com o completo alijamento das comunidades indígenas nesse processo, certamente irá frustrar a referida conferência nacional e causar grande comoção junto aos povos indígenas”, declara a Funai.
A autarquia vinculada ao Ministério da Justiça afirma que a MP possui um “vício intransponível”, ao atropelar a consulta prévia e livre aos povos indígenas, antes que qualquer empreendimento seja feito em suas terras.
O que está em jogo não é apenas o desrespeito aos povos indígenas. O posicionamento contundente da Funai, na realidade, também legisla em causa própria. A MP gestada na Casa Civil simplesmente ignora a existência da fundação e passa a atribuir ao Congresso Nacional a decisão de se fazer ou não determinado projeto que impacte terras homologadas. A MP pode ser, portanto, uma pá de cal sobre a Funai, órgão que tem sido cada vez mais esvaziado das decisões que afetam as comunidades indígenas.
No caso dos projetos hidrelétricos, há ainda a previsão de uma participação financeira dos índios nas operações das usinas, com um adicional de 0,6% sobre o preço da compensação financeira por conta do impacto em suas terras. Seria um tipo de royalty pago anualmente.
Para administrar a arrecadação e os repasses, foi estabelecida a criação de um fundo. O Fundo de Apoio aos Povos Indígenas (Fapi) será tocado por um comitê gestor presidido pelo Ministério da Fazenda, com participação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e do Ministério da Justiça. Os recursos serão centralizados em uma conta na Caixa Econômica Federal. Em nenhum momento, a MP menciona a participação da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A proposta estabelece ainda que a liberação de projetos de hidrelétricas que afetem terras indígenas obtenha antes autorização do Congresso Nacional. A regra vale tanto para projetos que tenham suas instalações ou equipamentos localizados total ou parcialmente dentro de terra indígena, ou para aqueles provoquem alagamento de parte da terra indígena.
A MP polêmica foi denunciada pelo cacique Raoni e um grupo de indígenas brasileiros que está nesta semana em Paris, na Cúpula do Clima (COP-21). O tema também será abordado pelo advogado do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental (ISA), Mauricio Guetta, durante evento que trata dos impactos aos povos indígenas no Brasil.
Regulamentação
Com a medida provisória, o governo quer regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal, uma proposta antiga do governo federal e defendida há muito tempo pelo setor elétrico, por ruralistas e pela indústria da mineração.
Pelo Artigo 231, o aproveitamento dos recursos hídricos, além da pesquisa e lavra das riquezas minerais em terras indígenas, só pode ser feito após autorização do Congresso Nacional, “ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados.” No Congresso, essa regulamentação já era alvo de um projeto de lei relatado pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR).
Para o governo, a nova MP é uma alternativa à Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215), que pretende retirar do Executivo a função de homologar terras indígenas, transferindo essa função para os parlamentares. Os órgãos ligados à defesa dos povos indígenas e do meio ambiente veem na regulamentação do artigo 231 uma ameaça, porque passa-se a admitir vários tipos de exploração comercial e industrial que hoje não podem ocorrer em terras demarcadas.
Tapajós
Com a MP, o governo consegue atingir diretamente a sua prioridade no setor elétrico: liberar a construção de duas megausinas no Rio Tapajós, no Pará. Esses dois projetos, que preveem investimentos da ordem de R$ 50 bilhões, respondem por quase metade de toda a geração hidrelétrica que o governo planeja no país para os próximos dez anos.
O impacto direto em terras indígenas, no entanto, já levou o governo a reformular as usinas e a adiar a realização de leilões, porque não conseguiu o licenciamento ambiental prévio dos empreendimentos, o que é exigido por lei. Ao estabelecer uma compensação financeira aos índios, o governo espera que projetos como esse avancem rapidamente. A intenção do Ministério de Minas e Energia é licitar a usina de São Luiz do Tapajós em 2016.
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