Obra do século 19 inspira manifestações
Contestar o poder e se opor às leis é uma ideia partilhada por importantes líderes do século 20 como Martin Luther King, nos EUA, e Mahatma Ghandi, na Índia. As diferentes formas de insubordinação, que inspiram movimentos como o que toma conta das ruas brasileiras, têm em sua origem a emblemática obra A Desobediência Civil, do pensador norte-americano Henry David Thoreau, publicada na primeira metade do século 19.
"A desobediência civil é a oposição nem sempre legal, mas legítima, por parte de determinados grupos sociais a determinadas instituições, que podem ser tanto organizações estatais quanto leis", explica o professor de Direito Egon Bockmann, da UFPR. Ele a diferencia do ato de contestar as leis dentro do sistema. "Recusar-se a pagar o Imposto de Renda ou pular a catraca dos ônibus para contestar o sistema de transporte público são exemplos de desobediência civil."
A ideia de Thoreau pode ser resumida em um trecho crucial de seu livro: "Se ela [a injustiça] for do tipo que requer que você seja o agente da injustiça contra outra pessoa, então, eu digo: Viole a lei".
Entretanto, Bockmann explica que as recentes manifestações brasileiras, embora derivem do conceito de Thoreau, dificilmente se classificariam como atos de desobediência civil. "O que temos é algo mais difuso e mais próprio de nossa sociedade multicultural, de direitos difusos."
1968 foi um ano marcado por protestos de rua em diversos países, tal como 2013 tem sido. O Maio de 68 francês, quando estudantes montaram barricadas nas ruas de Paris para enfrentar a polícia, inspirou jovens ao redor do planeta.
A mobilização de multidões, como a que toma conta das ruas do país, não é um fato inédito no Brasil. Quis a história que os atuais protestos coincidissem com outra manifestação histórica que está completando 45 anos e que tem semelhanças com as atuais marchas. Em 26 de junho de 1968, durante o governo do presidente Costa e Silva, 100 mil pessoas partiram da Cinelândia, no Rio de Janeiro, munidas de cartazes e palavras de ordem para protestar contra a ditadura militar. O episódio ficou conhecido como a Passeata dos Cem Mil.
"Havia [em 1968] uma certa insatisfação dos estudantes com as carreiras profissionais, havia a Guerra do Vietnã, e no ano anterior aconteceu a morte de Che Guevara. Mas principalmente havia a ideia muito forte do socialismo como alternativa ao capitalismo", diz o historiador Marco Antônio Villa, professor da pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
Estopim
Se os motivos das manifestações de 1968 e das atuais são completamente distintos, ao menos o estopim foi similar. O professor da Universidade de São Paulo Marcos Napoli lembra que a Passeata dos Cem Mil "foi uma resposta da sociedade carioca à intensa repressão a estudantes que ocorreu na Semana Sangrenta [de 19 a 21 de junho], no Rio de Janeiro". "Nesses dias, os protestos estudantis contra o regime se acirraram, causando a morte de quatro estudantes, dezenas de feridos e centenas de presos", diz Napoli. A violenta repressão policial aos primeiros protestos de 2013 em São Paulo também catalisou as atuais manifestações.
Napoli afirma ainda que a Passeata dos Cem Mil representava um descontentamento com o regime militar, que até 1968 não havia conseguido retomar o crescimento econômico. Situação parecida com o ambiente econômico de hoje, com PIB baixo e inflação em alta.
Outra coincidência entre 1968 e 2013 é o cenário internacional. Há 45 anos, havia protestos no mundo todo. Mais notadamente na França, onde estudantes montaram barricadas nas ruas de Paris para enfrentar a polícia e trabalhadores entraram em greve geral no que ficou conhecido como Maio de 68. Mais uma coincidência com relação à atualidade: 2013 também tem sido um ano de protestos populares internacionais como os que ocorrem na Europa e na Turquia.
Marcos Napoli afirma que, embora as manifestações nacionais de 1968 tenham se inspirado no exemplo parisiense, o movimento estudantil brasileiro tinha sua própria pauta. "Desde 1966, o movimento se empenhava na luta contra o regime militar, seja por questões estudantis, seja por questões políticas mais amplas."
A insatisfação das ruas contra a ditadura, somada a uma série de outros fatores, foi usada pela linha dura do regime militar como argumento para editar em dezembro daquele ano o Ato Institucional n.º 5. O AI-5 cassou direitos fundamentais, deu superpoderes ao presidente e levou ao endurecimento da ditadura, os chamados Anos de Chumbo. Algo que, espera-se, não venha a ter paralelo com 2013. Nem nunca mais na história do país.
Colaborou Fernando Martins.