Em 29 de agosto de 2012, foi apresentado o relatório na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado acerca do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 73, que aprova o texto da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, de 1980, internacionalmente conhecida pela sua sigla em inglês (CISG). O PDL já foi aprovado na Câmara de Deputados em 2011. Tão logo passe pelo Senado, a CISG terá sido aprovada pelo Brasil. Nos termos do seu artigo 99(2), passará a viger depois de doze meses contados do depósito do instrumento de aprovação.

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A CISG é atualmente aplicada por 78 países (cuja relação, com as respectivas reservas, se houver, pode ser consultada no website da UNCITRAL), incluindo os principais parceiros comerciais do Brasil. Tais países respondem por mais de 80% do comércio mundial de mercadorias, por meio de operações mercantis potencialmente regidas pela CISG. A relevância do Brasil no mercado mundial de compra e venda de commodities e de bens industrializados recomenda cada vez mais a sua adesão a um sistema de regras uniformes e verdadeiramente internacionais, destinado a dar segurança e previsibilidade nessas transações. Por outro lado, o Paraná tem reconhecidamente um papel fundamental no âmbito do comércio exterior brasileiro. As indústrias e o agronegócio paranaense serão diretamente afetados, em suas transações internacionais, pela introdução da CISG no Brasil.

De certo modo, as compras e vendas internacionais realizadas por brasileiros já podem ser submetidas à CISG, mesmo antes da sua entrada formal no direito brasileiro. Conforme escreve na 3ª edição de seus célebres Commentary on the UN Convention on the International Sale of Goods (CISG) a professora Ingeborg Schwenzer, da Universidade de Basileia, "a CISG exerce uma grande influência nas codificações modernas", citando como exemplos as legislações comerciais internas da Alemanha, da Holanda, dos países escandinavos, de muitas ex-repúblicas soviéticas e, principalmente, da China. Além disso, prossegue Ingeborg Schwenzer, em cada vez mais contratos internacionais de compra e venda a CISG é expressamente escolhida como direito aplicável. Nos termos do artigo 1(1)(b) da CISG, a convenção é aplicável também a países não contratantes da CISG se as regras de direito internacional – como, por exemplo, as de escolha do direito material aplicável – conduzirem à aplicação do direito de um país contratante.

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Isso ocorreu efetivamente em um caso julgado em 2009 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que o contrato previa a aplicação do direito material suíço. Como a Suíça é um país contratante da CISG, o tribunal arbitral aplicou a CISG como parte do direito material suíço. A parte derrotada impugnou a homologação da sentença arbitral estrangeira no STJ alegando que a aplicação de um tratado não aprovado pelo Brasil implicava ofensa à ordem pública nacional. A alegação foi rejeitada e a sentença foi regularmente homologada (SEC 3.035/FR). O caso foi comentado por Rabih Nasser na Revista Brasileira de Arbitragem nº 25, especialmente em razão do voto-vista da ministra Nancy Andrigui sobre este ponto específico.

Diante da intensidade do comércio internacional brasileiro e da ampla aplicação da CISG em tais operações, seu estudo aprofundado é fundamental – e se torna especialmente relevante na medida em que a CISG apresenta soluções distintas das consagradas no direito brasileiro em diversos pontos.

Por se tratar de uma convenção internacional que busca, tanto quanto possível, a uniformidade na sua interpretação e aplicação, o afastamento das soluções estabelecidas pelo direito interno é um pressuposto para a sua compreensão adequada. Assim, por exemplo, como diz Ingeborg Schwenzer, a adoção do sistema internacional impede que se apliquem as regras nacionais sobre a validade do contrato de compra e venda ou se reconheça o direito ao ressarcimento de danos não contemplados pela própria CISG. Caso contrário, ficaria frustrada a previsibilidade de regras e consequências que a CISG pretende assegurar às partes em uma compra e venda internacional. Por outro lado, exatamente por se tratar de um texto internacional, a CISG vale-se com frequência de conceitos jurídicos indeterminados como razoabilidade (fala-se em prazos razoáveis para sanar o descumprimento, por exemplo), no que se afasta da disciplina brasileira, mais baseada em soluções objetivas e determinadas.

Em artigo publicado no Journal of Law and Commerce, edição nº 25, Eduardo Grebler destaca diversos pontos comuns entre o direito brasileiro e a CISG. No entanto, também aponta diferenças importantes. Uma delas diz respeito às ofertas genéricas ou públicas de contratação, reconhecidas pelo Código Civil de 2002, mas não pela CISG, salvo em situações excepcionais. Também há diferenças importantes no direito a uma redução de preço por defeitos no produto, admitido de modo mais amplo na CISG. Uma distinção fundamental se relaciona com as consequências do inadimplemento contratual. Na CISG, exige-se, na maior parte dos casos, que a parte inocente assegure à parte inadimplente um prazo adicional (Nachfrist) para cumprimento, antes de promover a resolução do contrato. Não há esta exigência no direito interno brasileiro. Ainda sobre o inadimplemento contratual, a CISG cria um conceito próprio (fundamental breach, que poderia ser traduzido como "violação essencial"), inexistente no direito brasileiro. Entre nós, não se estabelece uma gradação da violação contratual, o que torna complexa a compreensão das situações em que há uma violação essencial que autorize a resolução de um contrato regido pela CISG.

O próprio parecer do Senado no PDL nº 73/2012, divulgado no final de agosto de 2012, formula comentários relevantes sobre a diferença entre os sistemas, dedicando-se mais intensamente ao artigo 28 da CISG, atinente à possibilidade de execução específica das obrigações descumpridas. Segundo o parecer, caberia ao decreto legislativo de aprovação da CISG adotar um dispositivo de natureza explicativa que orientasse a aplicação do dispositivo no Brasil. Não me parece que esta solução seja nem possível nem necessária. A aparente ambiguidade do dispositivo deriva apenas do fato de que se tratou de uma "solução de compromisso" destinada a assegurar a execução específica (specific performance) apenas nos países que a reconhecem e segundo as suas regras internas, uma vez que os regimes de civil law e de common law são essencialmente distintos neste ponto. Como esclarece Ingeborg Schwenzer , apenas em situações especiais se assegura a execução específica nos países de common law, sendo a regra geral a resolução com perdas e danos. Por outro lado, segundo o artigo 98, não se admitem outras reservas além das autorizadas na própria CISG, pelo que não caberia ao direito interno estabelecer condições que alterem, ainda que por via interpretativa, o conteúdo da convenção. Uma disposição introduzida no decreto legislativo que contrariasse o conteúdo da convenção teria que ser tida como não escrita e ineficaz.

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Em diversas Faculdades de Direito de Curitiba (UFPR, UniCuritiba, PUCPR e Universidade Positivo) já se estuda há vários anos a CISG por meio da preparação de equipes de alunos para competições internacionais de arbitragem e comércio internacional realizadas em Viena (Willem C. Vis International Commercial Arbitration Moot) e Hong Kong (Vis East). Em novembro de 2011, a Câmara de Mediação e Arbitragem da Fiep (Caiep) realizou seminário com os professores Ingeborg Schwenzer (Basileia) e Paulo Roberto Ribeiro Nalin (Universidade Federal do Paraná) para tratar dos desafios ligados à adesão do Brasil à CISG. Em outubro de 2012, este seminário da Caiep será estendido e realizado em formato de curso, com aulas diárias e duas semanas de duração, ministrado pela professora Ingeborg Schwenzer e diversos especialistas locais.

Tais iniciativas da academia e do setor empresarial favorecem a criação do conhecimento necessário para a aplicação adequada da CISG, com atenção à experiência internacional. Eduardo Grebler afirma que o Brasil já está maduro para reconhecer a existência de um paradigma internacional para as vendas de mercadorias, favorecendo com isto o desenvolvimento do comércio internacional. O estudo aprofundado da CISG e a formação de um contingente de juízes, árbitros e advogados brasileiros capacitados a operar com a CISG segundo seus parâmetros internacionais são instrumentos para a realização desse objetivo.

Cesar Guimarães Pereira, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, presidente da Câmara de Mediação e Arbitragem da Fiep (Caiep)