A decisão da Justiça Desportiva que excluiu o Grêmio de Porto Alegre da Copa do Brasil por atos racistas praticados por seus torcedores tem gerado grande repercussão, ultrapassando inclusive o próprio ambiente desportivo. Arrisca-se afirmar que a exclusão ganhou mais destaque do que a própria atitude sórdida dos torcedores contra o goleiro Aranha, do Santos. O tema merece então esclarecimentos indispensáveis.
É importante destacar que as decisões da Justiça Desportiva não são tomadas de forma arbitrária e casuísta, como meras decisões gerenciais tomadas por uma entidade privada qualquer. A Justiça Desportiva consiste em uma instância decisória específica, sem similaridade com outros órgãos jurisdicionais. Tem o poder de aplicar o direito ao caso concreto mesmo sem integrar o Poder Judiciário. Prevista na Constituição Federal, sua composição se dá nos termos da Lei 9.615/98 cada entidade de administração de cada modalidade desportiva (confederação e federação estadual) deverá constituir seu tribunal desportivo, composto por membros indicados pela própria entidade, pelos clubes, pelos atletas, pelos árbitros e pela OAB. O tribunal julga questões ligadas a disciplina desportiva e organização de competições (ou seja, não interfere em questões trabalhistas ou criminais, por exemplo) e aplica as regras materiais e processuais previstas no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (o CBJD), promulgado por portaria do Conselho Nacional do Esporte, órgão vinculado ao Ministério do Esporte. Há, assim, limites normativos na composição e no procedimento adotados pela Justiça Desportiva, que fundamenta suas decisões em regras claramente fixadas por ato oficial. Ademais, suas decisões somente podem ser revistas pela Justiça Comum após encerrada a última instância desportiva ou se passados 60 dias da instauração do processo desportivo, conforme preceituam os parágrafos do artigo 217 de nossa Constituição.
A estrutura foi assim criada com base em dois princípios celeridade e especialização. A Justiça Comum não atua no rápido ritmo exigido pela prática desportiva para solução de suas questões. E a Justiça Comum não possui suficiente intimidade com a lógica desportiva para aplicar as regras ao caso concreto. Há inclusive quem defenda que o Judiciário, quando instado a aferir a validade de decisões proferidas na instância desportiva, limite-se a verificar o preenchimento de requisitos processuais, sendo intocável o mérito do ato jurisdicional desportivo. Em que pese a inevitável exposição dos julgadores desportivos a influências políticas e midiáticas (que ocorrem também no Judiciário), há sim um sistema de garantias jurídicas, com parâmetros normativos, doutrina jurídica e experiência jurisprudencial que se aplicam na Justiça Desportiva. Isso exclui, assim, qualquer crítica baseada em mera conveniência.
O caso em tela envolve especialmente a aplicação do artigo 243-G do CBJD: "Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:" [Prevê-se pena de suspensão e multa a pessoas físicas]. "§ 1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente."
Essas normas, aprovadas em 2009, estabelecem o tipo infracional e as consequentes sanções. Pode-se questionar, democraticamente, se o tribunal desportivo soube apreciar as provas e as alegações de acusação e defesa, mas não se pode alegar que houve uma decisão irrefletida e impositiva.
Indo avante, a responsabilização da entidade por atos praticados por seus torcedores já é regra no desporto brasileiro desde ao menos 1984, quando da vigência do código disciplinar anterior, específico para o futebol, o CBDF. Em nível internacional, está consagrada há décadas nas normas das entidades que gerenciam as principais modalidades desportivas, inclusive a FIFA. Focalizando o futebol, entende-se de um lado que o clube mandante tem o dever de prevenir atos ilícitos que possam ser praticados por seus torcedores, uma vez que detém o controle das instalações desportivas utilizadas. De outro, ainda que se trate de atos absolutamente incontroláveis dos torcedores, a responsabilização é fundamentada no risco inerente à atividade que o clube exerce. O clube beneficia-se da atuação de sua torcida, seja em termos financeiros seja em termos técnicos (com o estímulo que recebe e a natural intimidação sofrida pelo visitante). Justo, portanto, que também sofra sanções por abusos cometidos por seus torcedores.
Por fim, não se pode perder de vista a gravidade da questão racial na atualidade. No caso em tela, a ofensa aos jogadores afrodescendentes não pode ser simplesmente tolerada. Não se trata de mera ofensa ou costume de torcedores. O absurdo desse raciocínio racista salta aos olhos diante de tanta informação antirracista a nós fornecida. Para os racistas que simplesmente não conseguem se colocar no lugar do outro, que não enxergam humanidade nos membros de etnias diversas, que enfim não sentem a crueldade da atitude racista, devemos nos limitar ao argumento normativo mais simples é crime, é infração desportiva, não pode e ponto.
Gil Justen Santana, advogado, é especialista em direito desportivo pelo Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.
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