A remoção do aplicativo "Secret" das principais lojas oficiais do gênero, App Store e Google Play a primeira, desenvolvedora do sistema operacional iOS, e a segunda, do Android além do similar Cryptic, da Microsoft, traz à tona uma discussão antiga, porém não ultrapassada: a partir de que ponto a liberdade de expressão, enquanto garantia fundamental do cidadão, passa a ser abusiva?
A proposta do Secret é simples, trata-se do envio de mensagens anônimas entre seus usuários, possibilitando, segundo seus fundadores e ex-funcionários do Google, Chrys Bader e David Bithon, que as pessoas sejam honestas. O cadastro pode ser feito através da rede social Facebook ou de um número de celular.
Uma vez realizado o cadastro, o usuário, que não tem a identidade revelada, pode publicar mensagens e imagens, e seus contatos podem, no máximo, saber se o autor da postagem é um amigo de sua lista de contatos ou um amigo de amigo. Porém, essa sensação de liberdade plena não é de todo verdadeira, pois todas as postagens são armazenadas pelos criadores do aplicativo, assim como várias informações dos usuários e seus contatos são coletadas e registradas.
Apenas pela descrição de funcionamento do aplicativo pode-se antever que a liberdade de manifestação pretensamente anônima pode levar ao cometimento de abusos. O ambiente é propício para isso, e o comportamento é incentivado pelo próprio desenvolvedor, ao fazer constar na sua tela inicial que o usuário "ficará totalmente anônimo, e nós jamais publicaremos qualquer coisa no Facebook".
Diante de tal fato e da notícia de que um rapaz de 25 anos foi alvo de quatro publicações no Secret, as quais traziam fotos íntimas suas e davam conta de que era portador do vírus HIV e participava de orgias com os seus amigos, o Ministério Público do Estado do Espírito Santo propôs Ação Civil Pública para que as lojas virtuais que permitiam o download gratuito do aplicativo o removessem imediatamente.
Tal pretensão foi acolhida através de medida liminar, na qual o magistrado ponderou o direito à liberdade de expressão, exteriorizada na manifestação e opinião dos usuários, que não prevalece à proibição do anonimato. A posição do juiz consagra o princípio inserido no artigo 5º, IV, da nossa Constituição da República.
Num primeiro momento, alguns poderiam dizer que a liberdade de expressão dentro de um aplicativo que guarda as informações de seus usuários prevaleceria diante da vedação ao anonimato, o que não é verdade, diante das peculiaridades que o envolvem.
Na hipótese de haver dano à personalidade de uma pessoa, através de notícias difamantes ou infundadas, invasão à sua privacidade e as mais diversas modalidades de bullying virtual, a primeira dificuldade em identificar o infrator passa pela sede do desenvolvedor da ferramenta, que fica nos Estados Unidos, e não possui escritório de representação no Brasil. Assim, qualquer pedido de identificação do usuário, feito por um juiz brasileiro, deve ser realizado através da chamada carta rogatória, enviada à justiça americana por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, um procedimento caro e demorado.
Além disso, os Termos de Uso e Privacidade do "Secret" estão redigidos em inglês, o que dificulta ao usuário comum a exata compreensão de como o aplicativo funciona, contrariando disposição do Código de Defesa do Consumidor que determina que todas as informações sobre o serviço devem ser passadas de forma clara e em língua portuguesa aos usuários. De igual forma, afronta o recente Marco Civil da Internet que prevê que todos os provedores que coletam, armazenam ou tratam de informações dos usuários brasileiros devem se submeter à legislação pátria.
O que se observa é que o aplicativo foi desenvolvido para uma realidade distinta, a americana, com legislação que possui significativas diferenças em relação à brasileira, já que lá existe outra concepção acerca da liberdade de expressão, compreendida quase que em termos absolutos, e o anonimato é permitido.
Apesar de a identificação do usuário ser possível, a demora em tal procedimento pode arruinar a vida de uma pessoa, através de uma informação inverídica ou uma exposição abusiva, e, o pior, sem que esta saiba de onde partem as agressões.
A vedação ao anonimato serve para proteger a liberdade de manifestação de pensamento dos cidadãos e não é uma proibição irrestrita, ela é até mesmo permitida em algumas situações, como no caso do sigilo à fonte jornalística. Ademais, ela se justifica para que o causador de qualquer dano seja identificado e que possa ser responsabilizado civil e criminalmente por seu malfeito.
Portanto conclui-se que a proibição do Secret não é desmedida, visto que a liberdade de expressão gera um dever de responsabilidade, não se tratando de qualquer censura, mas sim da preservação desse importante princípio, prevenindo-se o alargamento dos casos de manifestações abusivas que denigrem a dignidade humana na rede.
Paulo Roberto Narezi, advogado, é especialista em direito societário e em direito civil.
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