O crescimento do número de ações judiciais tem levado ao diálogo os diversos setores da Justiça e da Saúde, porém se restringindo a contemplar os direitos individualmente pretendidos, sem contribuir para melhorias sistêmicas.
Esse grande número de ações judiciais movidas por beneficiários do Sistema Único de Saúde (SUS) e da saúde suplementar (operadoras de planos de saúde) na busca por direitos que acreditam estarem sendo violados é o que se denomina judicialização da saúde. A banalização do uso dessas ações judiciais promove a iniquidade, desorganiza o funcionamento do SUS e da saúde suplementar, além de distorcer o seu financiamento ao impor alocação de recursos em áreas nem sempre prioritárias ou de relação custo/benefício técnica, econômica ou moralmente não justificáveis.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reconhece a judicialização da saúde pública e suplementar ao publicar as Recomendações nº 31, 36 e 43, em que se aconselha, por exemplo, que os tribunais adotem medidas visando melhor subsidiar os juízes e outros operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais referentes à assistência à saúde.
Na saúde suplementar os conflitos surgem principalmente da inobservância dos beneficiários aos contratos celebrados, fazendo com que busquem maior cobertura de procedimentos, medicamentos e materiais não previstos nos contratos de planos de saúde ou não elencados no rol de procedimentos de cobertura obrigatória pelas operadoras reeditado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a cada dois anos.
Em breve histórico, tem-se que a saúde suplementar foi regulamentada através da Lei nº 9.656/98. Os contratos de planos de saúde firmados antes dessa lei são chamados de planos não regulamentados ou antigos, e os celebrados após a lei são denominados planos novos ou regulamentados.
Antes da entrada em vigor da referida lei, as operadoras privadas de planos de saúde atuavam livremente no mercado, pois não havia nenhuma regulamentação do setor de saúde suplementar. Em relação aos planos não regulamentados ou antigos pode-se afirmar que as regras impostas pela Lei nº 9.656/98 e pelas resoluções emanadas da ANS a eles não se aplicam, valendo o que consta estritamente no contrato celebrado entre beneficiário e operadora, sob pena de violação às disposições contidas no artigo 5°, inciso XXXVI, da Constituição, sobremaneira ao princípio constitucional do ato jurídico perfeito.
Outrossim, através de decisões muitas vezes questionáveis, o Poder Judiciário vem impondo responsabilidade extra às operadoras, qual seja, garantir de forma ampla o direito à saúde, haja vista existir no Brasil um Sistema Único de Saúde desestruturado e que não atende integralmente à finalidade para a qual foi constituído (segundo a Constituição vigente, é dever do Estado prestar assistência à saúde de forma ilimitada).
Essa responsabilidade indevidamente imputada às operadoras de planos de saúde gera efeitos econômicos prejudiciais a todo o mercado de saúde suplementar. Diante da insegurança jurídica acerca do cumprimento ou não dos contratos, as transações econômicas tornam-se mais arriscadas e seus resultados, imprevisíveis, já que o agente econômico fica impedido de prever o teor da decisão sobre seu contrato, ou seja, se as cláusulas serão respeitadas ou se o magistrado utilizará critérios subjetivos evocando a justiça social.
O Judiciário não percebe que, ao conceder aos clientes de planos de saúde direitos não previstos no contrato, na regulamentação ou na lei, faz com que os custos derivados desse posicionamento judicial sejam incluídos nos valores cobrados de todos os consumidores, caso contrário a saúde suplementar desde já se inviabilizaria. E é justamente essa onerosidade do plano de saúde que o torna cada vez mais restrito, na medida em que o aumento da mensalidade restringe o número de consumidores em condições financeiras para contratá-lo. Ademais, deixa-se de atingir a função social do contrato, ou seja, o interesse da coletividade, já que a saúde suplementar não será capaz de auxiliar a saúde pública, que por si só é deficiente.
Na maioria das vezes o Judiciário, com forte tendência a decidir em favor do paciente e comumente induzido a erro, concede liminares e decisões cujas consequências são frustrantes sob dois aspectos: primeiro, porque em algum momento o consumidor terá de pagar por aquele custo (através do aumento das mensalidades) e, segundo, porque os benefícios da saúde suplementar alcançarão cada vez menos pessoas. Isso quer dizer que em um momento ou outro, direta ou indiretamente, toda a população pagará pelo benefício concedido a poucos pelo Judiciário.
Embora ainda tímidas, medidas no sentido de acatar as recomendações do CNJ para melhor aparelhar ou assessorar os magistrados estão sendo implementadas em todo o país. Dentre elas merece destaque o contrato de suporte técnico firmado entre o TJMG, o Instituto Brasileiro para Estudo e Desenvolvimento do Setor de Saúde (IBEDESS) e o Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde (NATS, da UFMG, ligado ao Hospital das Clínicas )em fevereiro de 2014, visando oferecer apoio técnico aos magistrados na formação do seu convencimento quando da apreciação das questões relativas à saúde.
Por meio desse tipo de convênio espera-se que o Judiciário atue de forma mais previsível, isenta e ágil, com maior embasamento técnico, além de seguir normas existentes e contratos devidamente celebrados, permitindo melhor alocação dos recursos econômicos e consequentemente maior crescimento e fortalecimento econômico do setor de saúde suplementar.
Fechar os olhos para as consequências do atual cenário da judicialização da saúde e ignorar as recomendações do CNJ significa dizer que as operadoras e seguradoras de planos privados de assistência à saúde estarão com a situação financeira em risco. Nessa toada, indaga-se: qual o futuro dos 50,3 milhões de beneficiários que hoje se utilizam da saúde suplementar no Brasil?
Beatriz Viegas, advogada, é especializada em saúde suplementar e direito médico.
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