Discussões acaloradas nas redes sociais já não são mais novidade, e não é difícil perceber que essa plataforma é excelente para acender a primeira faísca mas insuficiente para um correto trato de questões que vão além de um bate-boca entre celebridades (reais ou virtuais).

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Na última semana, a briga comprada por alguns nomes de peso da música brasileira, tendo como porta-voz a produtora Paula Lavigne, contra o PL 393/2011 em tramitação na Câmara e a ADI 4815 ajuizada no Supremo pela Associação Nacional dos Editores de Livros tornou-se um ótimo exemplo disso, uma vez que a troca de farpas digitais trouxe para o palco político, ainda que em segundo plano, assuntos tão relevantes quanto privacidade, autoria, liberdade de expressão, acesso à informação e outros. Por certo que 140 caracteres não garantiram profundidade aos argumentos lançados, mas o simples fato de uma discussão sobre temas tradicionalmente herméticos ter ocupado um espaço fora dos intransponíveis muros da academia e do legislativo já faz do acontecido algo que merece ser pensado.

Partindo da premissa de que o centro da contenda seja o estabelecimento de uma fronteira um tanto mais clara entre as existências pública e privada do indivíduo, é importante que não se perca de vista que o art. 20 do Código Civil é de suma importância na medida em que garante ao cidadão o resguardo de sua intimidade. Na linha da presente lei, o indivíduo estabelece o limite entre as partes de sua vida que podem ser públicas e as que interessam a ninguém mais do que ele próprio. O interesse do indivíduo estaria, assim sendo, acima de qualquer interesse da sociedade.

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Agora, levando-se em conta que memória individual e coletiva, apesar de distintas, trabalham juntas na construção dos valores do indivíduo e da sociedade em que ele vive e somando-se a isso o fato de que algumas memórias individuais têm maior repercussão nesse processo, parece correto que as restrições que se aplicam a estes sejam reduzidas no intuito de dar o conhecimento mais abrangente possível à sociedade sobre quem foram/são as pessoas que influenciam diretamente nosso modo de pensar e agir.

Interessante notar que o grupo representado por Paula Lavigne afirma não ser contra a publicação de biografias sem a autorização do biografado ou de quem o represente, mas sim contra a comercialização não autorizada, tendo sido cogitada, no calor da discussão, a possibilidade de o biografado receber royalties pela comercialização da biografia. Nada contra a pessoa querer ganhar algo em troca de contar sua história, mas, veja, somente se for ela quem está contando a história. Se a biografia for baseada em relatos de pessoas outras, que não o personagem principal, o biografado não é nada mais que um personagem, assim como todas as pessoas relacionadas a fatos da vida do biografado e que estarão presentes na biografia. A título de reforço, a história de um indivíduo é também parte da história do meio em que ele vive. Ou seja, quando esse indivíduo exerce uma influência considerável sobre um grupo ou sociedade, pode-se traçar o recorte histórico tendo como centro aquela personalidade, mas a história contada nunca será a de uma só pessoa.

Há que se cuidar ainda para que não surjam argumentos esdrúxulos como o que equipara tais royalties (a serem pagos ao biografado por estar contando sua história) ao direito autoral como alguns defenderam, dizendo que não receber um porcentual sobre o valor de comercialização de sua biografia seria como não receber pela execução de suas músicas. O direito autoral é do biógrafo, ele é o autor do trabalho. Desafio o nobre leitor a encontrar no art. 7º da Lei 9.610/98, que lista as modalidades de obras protegidas pelo direito autoral condição na qual se encaixe o biografado em qualquer daqueles 13 incisos.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que dizem querer barrar apenas a comercialização não autorizada das biografias, o grupo procura desvincular seu argumento do terreno financeiro (vivemos em uma sociedade na qual querer ganhar dinheiro é mal visto...) se apegando à ideia de preservação da privacidade dos famosos, algo como "falar sobre a obra pode, sobre a realidade em torno da obra, não". Note-se que os argumentos são contraditórios, pois um diz que, pagando, não há problema em tornar pública a intimidade do famoso, e o outro diz que a intimidade não tem preço.

Na verdade, o óbvio é que essa preocupação decorre da (natural) vontade de construção de um personagem idealizado. E há algum problema com a publicação dessa versão "conto de fadas" dos fatos? Por certo que não, é uma versão possível e merece ser publicada. Assim como todas as outras. O nome disso é liberdade de expressão.

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Rui Bittencourt, advogado, secretário do conselho editorial da Juruá Editora e mestrando.