Desde a década de 1990, muito se tem discutido no Brasil a propósito do fenômeno da regulação econômica. Até então, alguns dos principais setores da economia nacional eram estruturados sob a condição de monopólios públicos (telecomunicações, energia elétrica, transporte ferroviário, petróleo, água e saneamento etc.). Com a privatização formal – aquela institucionalizada por meio de contratos, sem a transferência da propriedade do bem ou serviço público – e com a abertura de alguns mercados, foram criadas entidades para disciplinar os setores recém-privatizados: as já conhecidas agências reguladoras independentes. O Estado deixaria de prestar determinados bens e serviços, passando a regulá-los a fim de garantir a qualidade e universalizar o acesso. O debate foi bastante intenso, sobretudo a respeito da capacidade, por parte das agências, de emanar normas gerais e abstratas (e de punir). Porém fato é que a regulação econômica é muito mais do que isso. Muito embora intenso, o debate foi também um pouco míope.

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Ora, é certo que, em quase todos os setores econômicos, existe o fenômeno da regulação em suas diversas facetas: seja a heterorregulação (um estranho ao mercado – i.e., o Estado, define as regras), seja a autorregulação (os próprios agentes econômicos se auto-organizam e disciplinam o funcionamento da sua profissão – ou do seu mercado), ou mesmo pela endorregulação (quando o Estado cria uma empresa que ingressa no mercado e força os demais agentes a mudar sua conduta). Por exemplo, no primeiro caso estão as agências reguladoras, no segundo, as ordens e conselhos profissionais e, no terceiro, os bancos públicos. Mas não se trata de modelos exclusivos: o que quase sempre se dá é a sucessão (ou mesmo a confusão) de instâncias regulamentares. Um exemplo recente permite alguma reflexão.

Pense-se nas chamadas profissões liberais (médicos, engenheiros, advogados etc.). A maioria delas é heterroregulada só até determinado momento – e sob certos aspectos. O Estado disciplina os cursos de ensino superior (é o Ministério da Educação que autoriza sua criação e os fiscaliza – e também define como se dá o ingresso neles e quais são os requisitos para a sua conclusão). Depois da formatura, essa atribuição é transferida aos conselhos profissionais, que normalmente têm autonomia para autorregular as respectivas categorias. O que se dá desde o ingresso (p. ex., só podem exercer a advocacia os aprovados no exame da OAB) até a saída (p. ex., a suspensão ou a expulsão), passando pela fiscalização da técnica (p. ex., as qualificações pertinentes a esta ou àquela especialidade médica) e da ética profissional (os parâmetros morais que precisam ser cumpridos por todos os membros da categoria). Até pouco tempo atrás e salvo exceções pontuais (o exame da OAB é um bom exemplo), não havia maiores discussões a respeito da autonomia dos conselhos profissionais. Mas o caso dos médicos estrangeiros permitiu que fossem reinstaladas algumas preocupações.

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Considerações à parte o louvável esforço estatal de suprir as deficiências na prestação de serviços essenciais, bem como o comprometimento dos profissionais estrangeiros (que se dispõem a enfrentar as agruras de regiões muitas vezes inóspitas e com instalações precárias), fato é que se faz necessário refletir a propósito da autonomia da regulação profissional. Hoje, há algumas perguntas sem as mesmas respostas de antes. Quem pode regular a profissão dos médicos? Quem disciplina o ingresso e o exercício da profissão? O Conselho Nacional de Medicina tem (ou não) autonomia? Até onde se pode ir na emanação – pública ou privada – das normas regulatórias pertinentes? Se pensarmos só nos médicos, as respostas já são difíceis; mas pensemos em cada uma dessas provocações numa perspectiva mais ampla.

Afinal, são os conselhos – ou ordens – os únicos detentores de competência para estabelecer o ingresso de – nacionais e estrangeiros – nas respectivas profissões? Eles podem inibir ou devem incentivar o acesso dos bacharéis? Está-se diante de ilegítima reserva de mercado ou de preservação dos paradigmas mínimos para determinadas profissões essenciais? Ou o Estado, por meio do Executivo e do Legislativo, pode fixar tais critérios? Todos os conselhos e ordens devem se submeter a essa ordem de ação estatal – ou só os de medicina? Os requisitos precisam sempre ser gerais, abstratos e permanentes – ou podem ser ad hoc? E, se o respectivo conselho exige a admissão com base num só parâmetro, isonômico para todos os demais interessados? Mais ainda: se a ordem – ou o conselho – considera que os indivíduos não estão habilitados, pode fiscalizá-los e puni-los? E o que se deveria passar com os bacharéis que haviam sido impedidos de exercer a profissão porque os respectivos cursos não atendiam aos parâmetros do Ministério da Educação? Ou que porventura reprovaram no exame de admissão? Estes outrora excluídos merecem ser tratados com isonomia, dentro das novas regras? Essas, dentre tantas outras, são perguntas que os conselhos e ordens profissionais precisam colocar em pauta.

A que tudo indica, o embate a propósito da autonomia dos conselhos de medicina pode se prestar a instalar um novo momento na reflexão, sempre constante, relativa ao fenômeno da regulação: auto, hetero ou endo? Qual a melhor medida, se é que existe uma?