Qualquer pessoa razoável acredita que os animais devem ser protegidos em alguma medida. Como bem notou Peter Singer em seu clássico "Libertação Animal", há uma diferença básica entre pedras e animais: aquelas, quando atingidas por golpes, não sofrem ou reagem. Há muito tempo o direito brasileiro não ignora esse fato, e o Decreto nº 24.645, editado em 1934, é prova disso. A tutela dos animais contra o sofrimento, portanto, integra a nossa tradição jurídica e, nesse particular, não destoa da existente na maioria dos países ocidentais civilizados.

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A controvérsia surge com a adoção de doutrinas filosóficas extremas por parte dos ativistas pró-animais, geralmente em descompasso com a legislação em vigor. Os ativistas mais engajados costumam optar pelo denominado abolicionismo animal ou por versões radicais do ambientalismo, a exemplo da ecologia profunda. No caso do abolicionismo, postula-se a extensão da gramática dos direitos fundamentais aos animais, que teriam dignidade própria. Por conseguinte os animais deveriam ser dotados de personalidade e libertos do direito de propriedade atribuído aos seres humanos. Já os defensores da ecologia profunda extrapolam a consideração moral para além dos seres humanos ou mesmo dos seres vivos, centrando suas atenções na própria biosfera.

A discussão filosófica é rica e todas as doutrinas descritas devem ser respeitadas como manifestações da liberdade de expressão. No entanto, quando trazidas para o espaço público e concretizadas sob a forma de atos, o cotejo com o ordenamento jurídico é inevitável. Passando ao largo das disposições legais ordinárias, com as quais não guardam nenhuma afinidade, cumpre saber se a ecologia profunda e o abolicionismo animal sobrevivem ao crivo da Constituição, que poderia orientar reformas legislativas mais profundas.

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Minha resposta é negativa.

A consagração da cláusula do Estado Democrático de Direito no art. 1º da Constituição revela que nossa República adota as premissas básicas do liberalismo político. Segundo John Rawls, a estrutura política liberal traduz condição inafastável para a estabilidade de sociedades plurais, como a nossa.

As sociedades contemporâneas são marcadas pela diversidade de doutrinas abrangentes razoáveis, ou seja, concepções religiosas, filosóficas e morais destinadas a regular (quase) todos os aspectos da vida de seus adeptos. Por absoluta incompatibilidade de propósitos, torna-se inviável a coexistência das inúmeras doutrinas abrangentes no domínio constitucional. Com os olhos voltados para a estabilidade e a coesão da sociedade, a Constituição busca viabilizar um consenso sobreposto, de natureza política, pelo qual os adeptos das doutrinas abrangentes possam comungar de princípios básicos, passíveis de aceitação por todos. Esses princípios constituem "razões públicas" e são eles que necessariamente orientam as decisões tomadas pelas autoridades do Estado, especialmente o Poder Judiciário. Nas palavras dos constitucionalistas Daniel Sarmento e Claudio Pereira de Souza Neto, "a ideia de razões públicas é a de que, na esfera política, ao lidar com temas essenciais... só são admissíveis argumentos independentes de doutrinas religiosas e metafísicas controvertidas a que cada cidadão adira".

O problema está em que as doutrinas abrangentes professadas pelos militantes pró-animais encontram-se fora do consenso sobreposto inscrito na Constituição. A atribuição de personalidade aos animais em pé de igualdade com os seres humanos e a abolição de qualquer instrumentalização animal são programas ideológicos que não integram o rol de princípios básicos passíveis de aceitação por todos os membros da comunidade política.

Ainda que se aceite a ideia de personalidade animal, por exemplo, o art. 1º, III, da Constituição contempla somente a dignidade da pessoa humana entre os fundamentos da República. A personalidade animal, portanto, teria status inferior. Em acréscimo, a validade jurídica da instrumentalização animal fica evidente no art. 23, VIII, da Constituição, que atribui ao Poder Público a competência para fomentar a produção agropecuária. Fosse a Constituição brasileira adepta do abolicionismo, a criação de animais para fins alimentícios não seria permitida, muito menos estimulada! A ecologia profunda é ainda mais problemática, porquanto consubstancia uma nova forma de organicismo, em que o todo (a biosfera) prevalece sobre as partes (os indivíduos), numa relação autoritária, hierarquizada e incompatível com o Estado de Direito ou mesmo com a ideia de direitos para animais.

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Por isso, parece mais razoável defender que as leis ambientais e bem-estaristas atualmente em vigor ajustam-se com maior naturalidade ao disposto na Constituição, que, em seu artigo 225, §1º, VII, simplesmente veda práticas que submetam animais a crueldade, tal qual fizera o Decreto nº 24.645 meio século antes.