Quod non est in actis non est in mundo. O que não está nos autos não está no mundo, assim prevê o princípio do livre-convencimento motivado do juiz. Com esta máxima, a doutrina e os tribunais pretendiam limitar a cognição judicial às provas e argumentos que efetivamente constassem do processo. As teses do debate processual eram instaladas pela petição inicial e encerradas na contestação. Caso houvesse controvérsia fática, ela era dirimida mediante provas. Mas somente as provas constantes fisicamente do corpo dos autos, bem como as argumentações lá desenvolvidas, poderiam ser levadas em conta para as decisões.

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Aos advogados era vedado inovar nos autos – e muito menos recorrer a dados extraprocessuais. Já aos magistrados não se possibilitava o conhecimento de fatos extraordinários aos do processo (as raras exceções eram as dos "públicos e notórios", que não dependem de prova devido à presunção normativa de seu conhecimento universal). Juiz e advogados tinham a possibilidade de fazer pesquisas e argumentações em seu ramo do conhecimento: o jurídico (livros, jurisprudência, pareceres etc.). Se a decisão dependesse de provas pertinentes a qualquer assunto que não o jurídico, ela haveria de ser produzida por técnicos independentes: as perícias (de engenharia, médicas, documentais, contábeis etc.). Tudo a ser produzidos do lado de dentro do processo, em páginas numeradas, de livre acesso e prévio conhecimento de todos. Esse acervo colaborava no livre convencimento do magistrado.

Porém, de alguns tempos para cá vem se tornando cada vez mais crescente a procura por provas e argumentos que podem subverter a máxima latina. O mundo processual, antes limitado aos autos, ultrapassou as fronteiras do real. Hoje, não são poucas as petições e as decisões – sobretudo em liminares – que se reportam a informações (técnicas, de outras ciências, ou até mesmo de opiniões de terceiros) oriundas da Wikipédia e do Google. A primeira, a célebre enciclopédia virtual sem autores conhecidos nem selecionados por meio de sua qualificação acadêmica, que muitas vezes cria as próprias verdades (basta que nos lembremos da polêmica com o célebre escritor norte-americano Philip Roth, em que este divulgou carta aberta indicando erros no verbete de seus livros – que antes haviam sido apontados à tal enciclopédia, a qual exigiu dois outros pareceres para alterar o texto). A segunda fonte extra-autos é aquele serviço que se tornou o mais usado para a busca de informações do mundo virtual. Nestes casos, as razões de decidir passam a decorrer não só do que as partes propuseram ao Judiciário, mas daquilo que foi achado na rede virtual (muitas vezes, sem que se saiba o critério de pesquisa ou a fidedignidade das fontes).

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Assim, os medicamentos a ser demandados em juízo já não são mais definidos pelos peritos médicos, nem tampouco o tratamento a ser ministrado – mas decorrem de explicações da Wikipédia. Os danos ambientais, sua gravidade e a necessidade de ordens judiciais têm por fundamento entrevistas, mapas e dados estatísticos oriundos de pesquisa aleatória no Google. Informações do Facebook servem de prova em demandas de direito de família e criminais. Aliás, quem não se lembra de parte do voto do Ministro relator da AP 470, ao consignar para o STF (e para todo o público) ter obtido a informação de que a ora Presidente da República, quando Ministra de Minas e Energia, havia "ficado surpresa com a rapidez que foi aprovada na Câmara dos Deputados o marco do setor energético" – dado este que comprovaria a compra e venda de votos dos parlamentares e o respectivo crime a ser apenado.

A toda evidência, não é de se rejeitar a acolhida dessas fontes de pesquisa pelo mundo do Direito - mesmo porque seria infértil a recusa: por um lado, hoje, boa parte dos processos é também virtual; por outro, Google e Wikipédia fazem parte na nossa cultura cotidiana (este artigo valeu-se de ambos para ser escrito). Tais fontes – assim como muitas outras – já foram definitivamente incorporadas à rotina dos juízes, advogados e partes do processo. Até aqui, a capitulação é inevitável.

Porém, o verdadeiro problema está em outro aspecto dessa convivência: até onde se pode ir? O verbete da enciclopédia virtual – ou a informação obtida via Google ou Facebook – podem legitimar o livre convencimento de um magistrado, apesar não estarem nos autos ou serem diferentes daquilo que nele consta por escrito? Quem pode acessar tais informações? Elas precisam ser submetidas ao contraditório? Qual o momento processual próprio para essa busca, se é que ele existe? Sob que critérios de pesquisa ela pode ser feita? Tais perguntas – e muitas outras – precisam ser postas a lume, sob pena de a máxima latina ser subvertida para a quod non est in Google non est in mundo.