Harry Houdini (1874-1926) é considerado um dos maiores ilusionistas da História. Ficou mundialmente conhecido por conseguir se livrar de correntes – com as quais era amarrado – mediante seus artifícios nebulosos. A lembrança de Houdini ajuda a entender a situação de muitos contribuintes brasileiros, pessoas físicas e jurídicas, que, mediante artifícios e estratagemas, conseguem se livrar dos tributos que deveriam normalmente pagar, com a mesma astúcia com que Houdini se livrava das correntes que o prendiam.

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O pagamento de tributos é a quota-parte de cada contribuinte para a manutenção do Estado, ou melhor, o preço que pagamos para viver em uma sociedade civilizada, como dizia o Juiz Oliver Wendell Holmes (1841-1935). Outra não era a concepção de Rudolf von Jhering (1818-1892), na obra A Evolução do Direito – Zweck in Recht (pp.338-339), para quem "a obrigação de pagar impostos corresponde ao dever cívico, que a todos assiste, de concorrer, cada um pela sua parte, para a realização de todos os fins da sociedade a que tais impostos se aplicam."

Se por um lado, parece ser algo bem assimilado pela sociedade que os condôminos devem pagar suas quotas condominiais, por outro lado, não é novidade que desde sempre os contribuintes lutam contra os impostos, ou seja, contra as quotas condominiais desse imenso condomínio social chamado Estado.

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Alguns contribuintes optam por simplesmente deixar de pagar a respectiva parte ou de informar a Administração que realizou o fato gerador da obrigação. Trata-se da sonegação fiscal (termo utilizado pelas Leis 4.792/64 e 9.983/00) ou simplesmente evasão fiscal, que tipificam condutas criminosas (Lei nº 8.137/91) tendentes a frustrar a arrecadação tributária. É o caso do contribuinte do Imposto sobre a Renda que deixa de informar à Receita Federal – ou informa incorretamente – o montante de parte dos rendimentos auferidos em determinado exercício ou daquele que vende imóvel, declarando valor menor que o efetivamente realizado.

Outros, com mais condições financeiras, contratam escritórios especializados que os auxiliam a deixar de pagar seus encargos sem o perigo de cometerem crime fiscal. É o que chamam de elisão fiscal, ou seja, a realização de condutas que sem afrontar diretamente o texto da lei, afrontam seu espírito, geralmente pelo abuso da interpretação do texto legal.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1935, julgou o emblemático caso Gregory vs. Helvering, que se tornou referência de abuso. Cuidava-se de uma reestruturação empresarial levada a cabo com o único objetivo de se reduzir o montante fiscal devido pela transferência dos direitos sobre ações adquiridas por meio de vultosa herança.

A Sra. Gregory, procurando não pagar imposto sobre a renda, fez uma operação de reorganização empresarial envolvendo três empresas, utilizando uma delas apenas para transferir ações, sendo extinta logo em seguida. A Suprema Corte entendeu não ter havido uma legítima reorganização societária (ausência de business purpose), mas simplesmente a interpretação mecânica e literal das palavras da lei para se pagar menos tributos.

A Europa, principalmente após Emsland-Stärke GmbH (C-110/99 – Acórdão de 14.12.2000), em que reconheu a existência de um princípio geral anti-abuso de direito, não mais tolera que os contribuintes lancem mão de interpretações abusivas para prejudicar a comunidade e não recolher a quota-parte devida.

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Fosse no Brasil, certamente a Sra. Gregory teria tido mais sorte. A ela certamente seriam aplicados os precedentes que autorizaram a incorporação de empresas lucrativas por empresas deficitárias, visando o aproveitamento de créditos fiscais, ou a criação de empresas de papel para que técnicos de futebol, jogadores, artistas e palestrantes continuem prestando seu serviço personalíssimo, mas sem pagar todos os tributos normalmente devidos.

Isso porque a maior parte da doutrina e jurisprudência nacional comunga do entendimento de que os tributos são como penas de um crime, e não um dever cívico. E mais: que às normas tributárias se aplicam os mesmos princípios aplicados aos tipos penais, entre eles a famigerada interpretação literal ou estrita das normas, com a proibição absoluta de qualquer forma de alargamento analógico.

Vigora nestas paragens o que Miguel Poiares Maduro chamou de "faroeste jurídico", em que "praticamente todo o tipo de comportamento oportunista tem de ser tolerado desde que seja conforme com uma intepretação formalista estrita das disposições fiscais relevantes e que o legislador não tenha expressamente tomado medidas para impedir esse comportamento."

Neste ambiente hostil a valores jurídicos como justiça e igualdade tributárias, todos os dias novos Houdinis se apresentam para a sociedade. Contribuintes (pessoas físicas e jurídicas) que, premidos pela tributação, contratam profissionais especializados e, através de abuso de formas jurídicas, surgem repentinamente libertos de todos os tributos que deviam pagar – deixando a conta para aqueles que não tiveram a mesma sorte ou recursos para tanto.

Anderson Furlan, juiz federal, ex-presidente da Apajufe, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, autor do livro Planejamento Fiscal (Forense, 2011).

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