O julgamento do mensalão foi aplaudido pela opinião pública e pela mídia como ato inédito de resgate da moralidade e combate à corrupção. A condenação de banqueiros e políticos famosos agradou a sociedade, acostumada com decisões responsabilizando penalmente delinquentes desconhecidos. O ministro-relator, além de capa de revista, tornou-se um verdadeiro "ator global", passando a imagem do novo "messias" de combate à malsinada corrupção, menosprezando, inclusive, alguns de seus pares.
Sucede, porém, que, se de um lado a repressão à corrupção merece elogios, de outro há que se registrar que, para alcançar esse resultado, a atual composição do Supremo Tribunal Federal (STF) mudou diametralmente a jurisprudência, por ocasião do exame da Ação Penal n.º 470. No mundo jurídico e empresarial, o clima é de apreensão e insegurança jurídica.
Com efeito, ao condenar os acusados, ainda que por maioria, os ministros do Supremo Tribunal Federal inovaram como se verifica da condenação por lavagem de dinheiro. Pois bem. Segundo a literatura jurídica mundial, a lavagem de dinheiro existe quando ocorrem três situações específicas: a ocultação de dinheiro proveniente do crime, sua dissimulação (na maioria dos casos, no sistema financeiro) e sua inserção na economia. Todavia, de acordo com o julgamento do mensalão, a condenação por lavagem de dinheiro pode ocorrer mesmo que o acusado tenha simplesmente ocultado o produto do crime que cometeu, sem necessariamente ter dissimulado sua origem e inserido o dinheiro ilegal na economia. Segundo o ministro Luiz Fux, "quem compra um carro, uma joia, já pode incorrer em lavagem. O uso do dinheiro é, sim, lavagem de dinheiro". Será? Mas não só.
Nesse julgamento, o STF aplicou a teoria do domínio do fato, sob o entendimento de que quem comanda um crime praticado por subordinados pode ser condenado sem provas concretas de seu efetivo envolvimento, pois sua posição hierárquica leva à conclusão de que teria o domínio do fato. Sucede que o próprio autor da teoria do domínio do fato, jurista alemão Claus Roxin, por inúmeras vezes já esclareceu que "a posição hierárquica não fundamenta sob nenhuma circunstância o domínio do fato. O mero ter que saber não basta", ou seja, a "participação no esquema tem que ser provada". Portanto, doravante, observado o precedente do mensalão, qualquer diretor de empresa poderá ser condenado pelo simples fato de que, em posição hierarquicamente superior, ele teria, obrigatoriamente, o domínio do fato.
Nunca é demais relembrar que mesmo à base dessa perigosa orientação insustentável à luz dos princípios elementares do justo processo penal vige em nosso sistema o princípio da responsabilidade pessoal penal e, mais que isso, subjetiva. Aliás, acertadamente, esse era o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Destaque-se o seguinte precedente: "o princípio da responsabilidade penal adotado pelo sistema jurídico brasileiro é pessoa (subjetivo). A autorização pretoriana de denúncia genérica para os crimes de autoria coletiva não pode servir de escudo retórico para a não descrição mínima da participação de cada agenda na conduta delitiva (...)" (HC 80.549).
Os exemplos extraídos deste julgamento são múltiplos. Veja-se o caso a dosimetria da pena. Para justificar a aplicação de penas elevadas, utilizou expressões, como "negociou com os bancos os empréstimos", "pôs em risco o regime democrático", "atuou intensamente", sem, contudo, apontar precisamente como exige nossa Constituição Federal onde, como, quando e de que forma específica e concreta (nunca evasiva e genérica) atuou o condenado.
Não pretendo aqui defender a impunidade. Jamais. Entretanto é preciso esclarecer que no processo criminal, para condenar, tudo deve ser muito evidente, fundamentado nas provas (e só nelas) constantes do processo e com absoluta certeza. Entendimento contrário autoriza transmudar o princípio do livre convencimento em arbítrio. Nossa Constituição Federal, aliás, repudia qualquer forma de abuso, inclusive do Judiciário.
Em síntese. Inegável que o julgamento do mensalão serviu para condenar uma política de governo que faz uso indevido de dinheiro público, empresários, banqueiros e agentes públicos para implantar um plano de governo, a qualquer preço. Assim decidindo, prestigiou o sistema republicano e democrático previsto pela nossa Constituição Federal. Contudo, gerou inegável insegurança jurídica, uma vez que amanhã, longe dos holofotes, se os milhares de magistrados aplicarem indistintamente o precedente de Ação Penal n.470, qualquer empresário ou cidadão comum poderá ser condenado, sem qualquer intenção (dolo) de praticar um crime.