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Em ambiente de confronto aberto estabelecido com o parlamento, o STF é acusado de se aproveitar do clima de "liberalismo antidemocrático", como escreveu Bresser-Pereira, e de promover "despotismo legislativo", como afirma o deputado Nazareno Fonteles para justificar a PEC 33/2011, iniciativa que pretende submeter a eficácia de decisões do STF à tutela política do Congresso Nacional.

Ao tisnar a atuação do STF, classificando-a como "despótica", nosso parlamento coloca em causa a legitimidade democrática da mais alta corte de justiça de nosso país, o que nos obriga a refletir seriamente sobre esse tema. Apesar da importância de "casos concretos" como o do mensalão, é na atividade pseudo-legislativa que reside o conflito entre Congresso e STF.

Embora tradicionalmente o tribunal se pronuncie sobre a inconstitucionalidade de normas votadas no parlamento, por meio da ADIn (Ação direta de Inconstitucionalidade) e da ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade), tornou-se muito frequente uma espécie de atividade pseudolegislativa, que se dá por intermédio de instrumentos processuais como o das súmulas vinculantes, das súmulas impeditivas de recursos ou ainda dos recentes enunciados gerais de julgamento de recursos repetitivos.

Generalizando, pode-se dizer que o STF emite inúmeras pseudoleis que valem para todos, abstratamente, independentemente do caso concreto, e essa função, na forma como vem sendo exercida, é relativamente nova.

Vejamos: a ADC foi inserida em 1993 (com a EC nº 3, idealizada pelo então Advogado-Geral da União Gilmar Mendes). A súmula vinculante veio ao texto constitucional apenas em 2004, com a Emenda Constitucional n.º 45. Já as súmulas impeditivas de recursos e o julgamento de recursos repetitivos vieram com meras reformas pontuais feitas no Código de Processo Civil em 2006.

Há, portanto, importantes mutações nas funções republicanas do STF, e essa perturbadora preeminência da Corte Suprema resulta do novo papel institucional que tem assumido: mais que dizer o Direito, criá-lo; mais que fazer justiça, realizá-la.

Mas se o STF não se evidenciar legitimado democraticamente para atuar em tal patamar institucional, há sério risco de intolerável retrocesso na vital independência da Corte. Nesse ponto, é preciso que se diga, a posição do STF está fragilizada. Sob o ângulo político, porque ao contrário dos outros Poderes, os membros que o integram não se submeteram ao voto. Não há eleição para ministro do STF, não há urna nem escrutínio, apenas indicação presidencial associada à quimérica sabatina parlamentar, sem qualquer pudor democrático.

Isso permite que alguns membros do STF guardem indisfarçáveis vínculos políticos, com assunção de compromissos inconfessáveis e que outros mantenham questionáveis intimidades com advogados que postulam na Corte. Tais condições não apenas solapam a credibilidade pessoal de ministros, mas contaminam o prestígio do próprio tribunal.

Além disso, tecnicamente, poucos ministros do Supremo ainda exercem ascendência sobre a classe jurídica e muitos acórdãos do tribunal sofrem severas críticas e – sobretudo pelo seu caráter personalíssimo – são muito difíceis de serem interpretados. O STF raramente olha para baixo, para a massa crítica nacional, como se tudo pudesse começar e terminar em Brasília. Por isso, a histórica persuasão dos julgados do STF foi substituída, nos últimos anos, pela imposição verticalizada, pelo stare decisis vertical, de caráter hierárquico.

O Poder Judiciário tem características próprias. Sua inquestionáve l legitimidade democrática decorre da carreira de juiz, dos milhares de juízes que ingressaram na função após submeter-se a um dos concursos públicos mais difíceis do mundo. Diferentemente do Supremo, nos tribunais estaduais ou federais, quatro de cada cinco cadeiras de desembargador são ocupadas por magistrados de carreira, oriundos de comarcas, grandes ou pequenas, de todos os rincões do território nacional. A indicação política se limita a um quinto das vagas.

Isso significa que a legitimação democrática do STF, sobretudo quando se põe a legislar, emitindo normas de alta generalidade e abstração, deve ser haurida no seio do próprio Poder Judiciário.

Não haverá espaço para "despotismo" no STF sempre que evidenciando o respeito pela massa crítica nacional, pelos precedentes, pelos julgamentos incidentais de inconstitucionalidade ou nos juízos de ilegalidade, feitos quotidianamente por milhares de juízes de primeiro grau legitimados pelo concurso público e por centenas de desembargadores, em processos que guardem o due process of law, nos quais há viva participação de centenas de milhares de advogados, procuradores e promotores de todas as regiões do país.

Assim, embora se afigure importante e urgente a revisão dos mecanismos de indicação e sabatina para ingresso no Supremo Tribunal Federal, como a PEC nº 44 de autoria do senador Cristovam Buarque ou o projeto subscrito pelo jurista Fábio Konder Comparato, isso não é o bastante.

Acima de tudo, o próprio STF precisa refletir sobre sua posição atual – precisa olhar para baixo. Cumpre a esse tribunal, antes que oportunisticamente outro Poder o obrigue a tanto, estabelecer sua própria condição de legitimação democrática, buscando-a, não na autoafirmação do órgão, não no personalismo de seus ministros, mas no esforço coletivo de todo o Poder Judiciário.

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