Ao palco dos debates volta o Conselho Nacional de Justiça. Sua função de impor limites vem de ser posta à prova, novamente, ao disciplinar o patrocínio de eventos para magistrados. A questão é nítida: como fiscalizar a função do juiz sem jamais afrontar sua natural e indispensável independência? A resposta pode ser dada.
Principie-se por enunciado republicano: não pode haver Estado dentro do próprio Estado, logo, o Poder Judiciário (leia-se: o conjunto das funções essenciais à Justiça) não é um Estado dentro do Estado brasileiro. Recentes notícias sobre a atuação do Conselho Nacional de Justiça arrostam condutas que, no âmbito da comunidade jurídica brasileira, nomeadamente no Poder Judiciário (entenda-se magistratura, Ministério Público e advocacia), se assemelham a precipitados insolúveis. Uma mudança de fundo é imperativa, não sendo suficiente, embora útil e necessária, a regulamentação pontual.
O CNJ tem intentado encontrar o ponto do equilíbrio, com firmeza e serenidade, merecendo, pois, o aplauso do todo o sentimento republicano que emerge da sociedade. Ninguém está acima da lei, nem mesmo o próprio Conselho, e dos magistrados se espera, somente, a aplicação do ordenamento jurídico sem titubeios nem comprometimento. Legítima é, pois, a direção tomada pelo CNJ que aponta para imposição de limites.
Anuncia-se, todavia, "um mal-estar" entre interesses de corporações e as diretivas do CNJ a fim de submeter a todos às regras do comedimento. Cumpre distinguir.
Impende, de uma parte, aplaudir o CNJ diante desse caminho de sinceridade administrativa e normativa. Se o CNJ recuar, dará ensejo a um grande sentimento de frustração quanto ao funcionamento do próprio Estado Democrático de Direito.
De outra, parece de todo correto que associações profissionais defendam seus integrantes de uma condenação apriorística.
Em nosso ver, sem embargo, a questão central é de outra ordem, está, isso sim, na magnitude do programa constitucional que os Poderes da República ainda não capturaram em sua essência. Proposta para voo de cisne, a República, no Brasil, profetiza lufadas para andorinhas.
Por isso, o verdadeiro mal-estar se localiza, a rigor, em outro plano. Falta não apenas a segmentos do Poder Judiciário e assim também a uma boa parcela da comunidade jurídica dos intérpretes e aplicadores da lei cumprir com o "poder/dever" da máxima efetividade da Constituição. Falta-nos, pois, a integral compreensão mais exata de que a Constituição não é apenas aparato e instrumento da instância jurídica; ela guarda, em si, a proteção que implica também atuação promocional que chama a tarefa de realizar direitos efetivos para a sociedade e não apenas conservá-los nos meandros de um processo que se esgota em si mesmo.
Se for certo que juiz não pode nem deve substituir o executor de políticas públicas, parece adequado também que a todo intérprete e aplicador da lei caiba, no cenário do Estado Democrático de Direito, um leiaute do seu dever prestacional constitucional. Não raro, o que se faz de hábito é remeter as mazelas ao outro, ao próximo, ao Estado, e, por isso mesmo, ao Estado-juiz. A efetividade da Constituição pode ser vista como um modo de ser, especialmente para o aplicador da lei.
Não apenas ao Supremo Tribunal Federal, mas ao CNJ e a todo juiz impende ser guardião da Constituição, o que significa, de um lado, assegurar a existência e o desenvolvimento de condições e instituições capazes de manter o processo democrático em funcionamento, sem retrocesso, e de outro municiar a prestação jurisdicional das condições humanas, técnicas e instrumentais imprescindíveis aos seus afazeres. Isso interessa a todos os cidadãos, à sociedade e ao Estado contemporâneo. O Brasil não pode negar atenção aos juízes de seu tempo.
Impende, ademais, evitar generalizações, próprias da simplificação que torna todas as grandes questões nacionais em escolhas plebiscitárias. A simplória demonização de todo e qualquer suporte material pode afastar genuíno apoio que não tenha relação direta com a magistratura, vincado por ausência de interesse parcial e submetido a uma total ética da transparência.
No Brasil contemporâneo, com processos mediáticos de culpas instantâneas, soa razoável superar o estima dos culpados a priori a qualquer custo pela ideologia da responsabilidade. Ainda mais: se mostra equidoso também não se pautar por incidentes episódicos de ocasião, adotando, procedimento duradouro de consciência crítica, mediante debate público e aberto de diretrizes permanentes e estruturais.
Sem arroubos nem proselitismos, o que se almeja, obstando bandeiras corporativas, venham de onde vier, é que não se adie, como tem sido hábito, a ocorrência de perspectivas de futuro, de zelo pelos bens públicos e do exemplo a ser dado por meio de comportamentos objetivos. Fiscais e fiscalizados somos todos nós, a todo tempo.
Por isso, nos limites devidos, a saudável atuação do CNJ não pode retroceder, pois atende, assim, ao melhor interesse republicano da sociedade brasileira. Não é preciso reinventar a roda, basta deixá-la circular como devido, sob uma ordem fundada na razão pública, na qual sejam convergentes a vida moral e a vida do poder. Será demais almejar esse encontro? Lembremo-nos que Cícero recusou tanto a força do leão quanto à astúcia da raposa, por isso o ponto para o equilíbrio pode encontrar na primazia da Constituição a necessária ética da responsabilidade.
Luiz Edson Fachin, advogado, é professor titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFPR; doutor em Direito das Relações Sociais e pós-doutor no Canadá pelo Ministério das Relações Exteriores do Canadá.